Discurso proferido pelo Presidente do Conselho de Estado da República de Cuba, Fidel Castro Ruz, na Aula Magna da Universidade Central de Venezuela, no dia 3 de Fevereiro de 1999
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UMA REVOLUÇÃO SÓ PODE SER FILHA DA CULTURA E DAS IDÉIAS
Breve prólogo do autor
PARA OS QUE TIVEREM A AMABILIDADE E A PACIÊNCIA DE LER ESTE MATERIAL
Este discurso, proferido na Aula Magna da Universidade Central da Venezuela, tem para mim um significado especial. Proferí-o há apenas um mês e meio, a 3 de Fevereiro de 1999.
Sei lá quantos mortais terão passado por uma experiência tão singular e única como a que vivi naquela tarde.
Um novo e jovem Presidente, após uma vitória política espectacular, e apoiado por um mar de povo, tinha tomado posse do seu cargo 24 horas antes. Por ocasião da visita que por tal motivo fiz a esse país, entre outros muitos convidados, as autoridades e os estudantes da referida universidade, fizeram tudo para que eu oferecesse o que se tem denominado conferência magistral, e da qual só o qualificativo suscita rubor e aflição, nomeadamente para aqueles que não somos académicos, nem temos aprendido outra coisa senão o modesto ofício de fazer uso da palavra para transmitir aquilo que pensamos em forma e estilo próprios.
Uma vez vencida minha sempiterna resistência a tais aventuras, aceitei o compromisso sempre perigoso e delicado para aquele que, no seu carácter de convidado oficial, visita um país em plena esfervecência política. Além disso, obrigado irremissivelmente pela solidariedade para com Cuba, sempre invariável, dos que me convidavam à conferência. Tinha estado ali uma vez, e sempre me lembrava disso. Sentia como se me fosse encontrar com as mesmas pessoas.
Uma questão apenas lembrada de súbito quando estava quase a partir para o recinto universitário, veio à minha mente: o tempo passa e nem reparamos nisso.
Tinham decorrido exactamente quarenta anos e dez dias desde que tive o privilégio de lhes falar aos estudantes naquela imponente Aula Magna, da combativa e prestigiosa Universidade venezuelana, no 24 de Janeiro de 1959. Um dia antes, em 23 de Janeiro desse ano, tinha chegado a Venezuela. Comemorava-se o primeiro aniversário do triunfo popular contra um governo militar autoritário. Apenas três semanas antes nós tínhamos atingido a vitória revolucionária no dia Primeiro de Janeiro de 1959. Uma multidão enorme me esperou no aeroporto e me assediava por todas partes durante os dias que ali estive. Nada tinha de diferente da experiência vivida na minha Pátria.
Tento me lembrar com a maior exatidão possível o quê estava acontecendo dentro de mim. Quantas ideias, sentimentos, emoções, surgidas da mente e do coração, se misturavam! Daquele turbilhão de lembranças posso confiar mais na lógica do que na memória.
Naquela altura tinha 32 anos. Tínhamos vencido em 24 meses e 13 dias uma força de 80 mil homens a partir de 7 fuzis, reunidos depois da grande derrota sofrida pelo nosso pequeno destacamento de 82 homens, três dias depois do nosso desembarque, a 2 de Dezembro de 1956.
Repletos de ideias e sonhos, porém ainda sumamente inexperientes, participamos dum comício gigantesco, celebrado na Praça do Silêncio naquele 23 de Janeiro. No dia seguinte visitamos a Universidade nacional, bastião tradicional da inteligência, a rebeldia e a luta do povo venezuelano. Eu próprio, sentia-me ainda como um estudante recém-saído das salas universitárias havia apenas 8 anos, dos quais quase sete os dedicara, desde o traiçoeiro golpe de estado de 10 de Março de 1952, à preparação da rebelião armada, o cárcere, o exílio, o regresso e a guerra vitoriosa, sem ter perdido nunca o contacto com os estudantes do nosso mais alto centro docente.
Naquela ocasião falei para os professores e estudantes a respeito da libertação dos povos oprimidos da Nossa América. Agora, voltava com a mesma febre revolucionária daquela altura, e com a experiência acumulada durante 40 anos de luta épica levada a cabo pelo nosso povo contra a potência mais poderosa e egoísta que jamais existiu.
Todavia, um grande desafio se abria perante mim. Os professores e estudantes eram outros; a Venezuela era outra; o mundo era outro. Como pensariam aqueles jovens? Quais seriam suas actuais inquietações? Até que ponto compartilhavam ou discrepavam do actual processo? Qual o grau de consciência que tinham da situação objectiva do mundo e do seu próprio país? Tinha aceite o amável e amistoso convite mal cheguei a Venezuela, dois dias antes. Não tive nem um mínimo tempo para me informar devidamente. O que lhes interessava? A respeito de quê lhes iria falar? Com que grau de liberdade podia fazê-lo um convidado ao câmbio de governo, obrigado como estava, pelo mais elementar sentido do respeito à soberania e ao orgulho do país que começou as nossas lutas pela independência, a não imiscuir-me em seus assuntos internos? Como poderiam ser interpretadas minhas palavras nos mais dissímeis meios sociais, instituições e partidos políticos? Contudo, não tinha outra alternativa que falar-lhes, e devia fazê-lo com toda honestidade.
Com alguns dados na memória, quatro ou cinco folhas de referências que inevitavelmente deviam ser transcritas para as citar com exactidão, e três ou quatro idéias básicas, encaminhei-me resolutamente ao encontro com os estudantes. Pediram para que eu realizasse o comício num campo aberto para dispor de mais espaço. Insisti na conveniência de realizá-lo sob tecto, na Aula Magna, como o lugar mais idôneo, ao meu ver, para a troca e a reflexão.
Ao chegarmos ao campus, vi milhares de cadeiras em diversos espaços abertos, repletos de estudantes, perante telas gigantescas, que desejavam assitir à conferência. Os 2 800 lugares da Aula Magna estavam ocupados. Começou a difícil prova. Falei-lhes com toda franqueza e, ao mesmo tempo, com absoluto respeito pelas normas que achei meu dever cumprir. Exprimi, de forma suscinta, as minhas ideias essenciais: aquilo que penso da globalização neoliberal; o absolutamente insustentável, do ponto de vista social e ecológico, da ordem económica imposta à humanidade; a sua origem, desenhada para os interesses do imperialismo e impulsionada pelo avanço das forças produtivas e o desenvolvimento acelerado da ciência e da técnica; seu carácter temporário e o seu desaparecimento inevitável por lei da história. A burla ao mundo e os inacreditáveis privilégios usurpados pelos Estados Unidos da América; énfase especial no valor das ideias; desmoralização e incerteza dos teóricos do sistema; tácticas e estratégias de luta; rumo provável dos acontecimentos; plena confiança na capacidade humana para sobreviver.
Salpicada de anecdotas, histórias, referências micro-autobiográficas que iam surgindo espontaneamente no decurso das reflexões, essa foi a nada magistral conferência com que respondi àquilo que me foi solicitado. Expus-lhes, com o calor e a devoção de sempre, e uma convicção mais profunda do que nunca, as ideias que sustento com frio e reflexivo fanatismo. Como combatente que nunca deixou de lutar nem um minuto, num prolongado período que decorreu de 1959 a 1999, tivera o raro privilégio de me reunir numa Universidade histórica e prestigiosa com duas gerações diferentes de estudantes, em dois mundos radicalmente diferentes. Nas duas ocasiões fui recebido com o mesmo calor e respeito.
Eu poderia estar já curtido por todas as emoções vividas, mas não era assim.
Tinham decorrido as horas. No fim, prometi-lhes que dentro de quarenta anos, quando nos voltássemos reunir, seria mais breve. Da entusiasta e combativa multidão, muitos permaneceram nos seus assentos com interesse e atenção até ao fim. Alguns foram embora, talvez já era tarde demais. Não esquecerei jamais aquele encontro.
Fidel Castro Ruz
18 de Março de 1999.
Não venho com um discurso escrito, infelizmente (Risos), mas trago alguns apontamentos que achei conveniente para pormenorizar bem. E, apesar de tudo, que desgraça! (Risos), descobri que me faltava um folheto, que li com muito cuidado, sublinhei, fiz apontamentos, e ficou no hotel (Risos e aplausos). Pedi que mo trouxessem, espero que apareça, porque o outro, que é uma cópia, não está sublinhado.
Pelo menos tenho que me dirigir formalmente ao nosso público, não é? (Risos.) Não farei uma lista longa da excelente e numerosa categoria de amigos que cá temos (Alguém do público diz: "Cá não ouvimos!"). Olha, a voz não dá para chegar até lá (Risos e aplausos), porque se eu gritar...
Achei que cá tinham microfones melhores (Risos).
Quem são os que não ouvem lá? Que levantem a mão (Levantam a mão). Se isto não se arranjar, podemos convidá-los para que fiquem sentados por aqui ou por algum lugar donde possam ouvir (Aplausos).
Tentarei me aproximar mais um bocado a este microfone pequeno não é?, mas permitam-me começar como se deve.
Caros amigas e amigos (Aplausos):
Ia lhes dizer que hoje, 3 de Fevereiro, fazem 40 anos e 10 dias da minha visita a esta Universidade, em que nos reunimos neste mesmo sítio. Um pouco de emoção, como vocês compreenderão, e sem o melodramatismo de alguns romances actuais (Risos), devo experimentar perante o facto inimaginável naquela altura, de que um dia, depois de tantos anos, iria regressar a este local.
Há apenas umas semanas, em Santiago de Cuba, no dia Primeiro de Janeiro de 1999, por ocasião da celebração do 40 aniversário do triunfo da Revolução, desde a mesma varanda, do mesmo edifício donde falei aquela vez, no dia Primeiro de Janeiro de 1959, reflectia junto do público lá reunido, que o povo de hoje não é o mesmo povo daquela altura, visto que dos 11 milhões de compatriotas que somos na actualidade, 7 190 000 tinham nascido depois daquele dia; que eram dois povos diferentes, porém, ao mesmo tempo, o mesmo povo eterno de Cuba.
Da mesma forma lhes recordava que aqueles que na altura tinham 50 anos, na sua imensa maioria não se encontravam junto de nós, e aqueles que eram crianças, já tinham mais de 40 anos.
Reparem quantas mudanças, quantas diferenças, e que sentido particular tinha para nós pensar que ali tínhamos ao povo que começou uma revolução profunda quando era praticamente analfabeto, quando 30% dos adultos não sabiam nem ler nem escrever, e quando talvez um 50% adicional não tivesse chegado à quinta classe. Talvez menos; fizemos os cálculos de que naquela altura, com uma população de quase 7 milhões de habitantes, aqueles que tinham ultrapassado a quinta classe possivelmente não eram mais de 250 000 pessoas, e hoje, apenas os graduados universitários ascendiam a 600 000, e entre professores e mestres a cifra atingia quase 300 000.
Dizia-lhes aos meus compatriotas, como homenagem àquele povo que tinha alcançado sua primeira grande vitória 40 anos atrás, para além daquele enorme atraso educacional, que tinha sido capaz de levar a cabo e defender uma extraordinária proeza revolucionária. E outra coisa: É possível que por debaixo do nível de educação estivesse inclusive o nível de cultura política. Eram os tempos do anti-comunismo feroz, dos anos finais do Macarthismo, em que por todos os meios possíveis aquele vizinho poderoso e imperial tinha tentado inculcar-lhe ao nosso povo nobre todas as mentiras e prejuízos possíveis, de tal maneira que muitas das vezes me encontrava com um cidadão comum e lhe fazia uma série de perguntas: Se lhe parecia que devíamos fazer uma reforma agrária; se não seria justo que as famílias um dia fossem proprietárias das suas moradias, pelas quais às vezes pagavam aos grandes casa-tenentes até a metade dos seus ordenados; se não lhe parecia correcto que todos aqueles bancos onde estava depositado o dinheiro dos cidadãos, em lugar de ser propriedade de instituições privadas, fossem propriedade do povo para financiar com aqueles recursos o desenvolvimento do país; se aquelas grandes fábricas, estrangeiras na sua grande maioria, e algumas também nacionais, fossem do povo e produzissem em benefício do povo; e coisas desse jeito. Podia perguntar-lhe dez, quinze coisas semelhantes, e concordava absolutamente: "Sim, seria excelente."
Em essência, se todos aqueles grandes armazéns comerciais, e todos os negócios suculentos que unicamente enriqueciam seus donos privilegiados, fossem do povo e para enriquecer o povo, estaria de acordo? "Sim, sim, respondia logo. Concordava cem por cento com cada uma daquelas propostas singelas. E então, perguntava-lhe de súbito: Estarias de acordo com o Socialismo? (Aplausos.) Resposta: "Socialismo? Não, não, não, com o socialismo, não." Tais eram os prejuízos... Isso, sem falarmos em comunismo, que era uma palavra muito mais aterradora.
As leis revolucionárias foram as que contribuíram para a criação no nosso país de uma consciência socialista, e foi esse mesmo povo, inicialmente analfabeto ou semi-analfabeto, que teve de começar a ensinar a ler e escrever a muitos dos seus filhos, aquele que por puros sentimentos de amor à liberdade e anseio de justiça derrubou a tirania e levou a cabo e defendeu com heroísmo a revolução social mais profunda neste hemisfério.
Dois anos após o triunfo da Revolução, em 1961, conseguimos alfabetizar ao redor de um milhão de pessoas, com o apoio de jovens estudantes que se tornaram mestres. Foram para os campos, para as montanhas, para os sítios mais afastados, e lá ensinaram a ler e escrever até pessoas com 80 anos de idade. Depois foram feitos os cursos de acompanhamento e foram dados os passos necessários, num esforço incessante para atingir aquilo que hoje temos. Uma revolução só pode ser filha da cultura e das ideias.
Nenhum povo se torna revolucionário pela força. Aqueles que plantam ideias jamais precisam reprimir o povo. As armas nas mãos desse próprio povo, são para lutar contra os que desde o exterior tentem arrebatar-lhe suas conquistas.
Perdoem-me que tenha falado a respeito deste tema, porque não vim aqui predicar sobre o socialismo, nem sobre o comunismo —não quero ser mal interpretado por alguém—, nem vim aqui a propor leis radicais nem coisas parecidas; simplesmente reflectia sobre a experiência vivida que nos demonstrou quanto valiam as ideias, quanto valia a fé no homem, quanto valia a confiança nos povos, o qual resulta sumamente importante numa época em que a humanidade enfrenta tempos tão complexos e difíceis.
É claro que no dia Primeiro de Janeiro deste ano em Santiago de Cuba foi justo reconhecer, de maneira muito especial, que aquela Revolução que tinha conseguido resistir 40 anos, que tinha conseguido fazer esses anos sem submeter suas bandeiras, sem se render, era obra fundamentalmente daquele povo que lá estava, de jovens e de homens e mulheres maduros, que foram educados pela Revolução e foram capazes de realizar a proeza, escrevendo páginas de glória nobre e merecida para a nossa pátria e os nossos irmãos da América.
Graças ao esforço, poderíamos dizer, de três gerações de cubanos, operou-se essa espécie de milagre frente à potência mais poderosa, o maior império que tenha existido jamais na história humana, de que o pequeno país passasse uma prova tão dura e saísse vitorioso.
Um especial reconhecimento, ainda maior, foi para aqueles compatriotas que nos últimos dez anos, se quisermos com exatitude, nos últimos 8 anos, tinham sido capazes de resistir o duplo bloqueio quando o bloco socialista é derrubou-se, a URSS é desintegrada, e aquele vizinho ficou como única superpotência num mundo unipolar, sem rival no terreno político, económico, militar, tecnológico e cultural. Não estou a classificar a cultura, estou a classificar o poder imenso com que querem impor sua cultura ao resto do mundo (Aplausos).
Não pôde vencer um povo unido, um povo armado de ideias justas, um povo na posse de uma grande consciência política, porque a isso nós lhe damos a maior importância. Resistimos tudo o que temos resistido e estamos dispostos a resistir todo o tempo que for preciso resistir (Aplausos), pelas sementes que foram plantadas ao longo daquelas décadas, pelas ideias e consciências que se desenvolveram nesse tempo.
Foi a nossa melhor arma, a nossa principal arma, e sempre o será, ainda na época nuclear. E falando nisso, até tivemos experiências relativas a armas desse tipo, visto que em determinada altura quem sabe quantas bombas e quantos mísseis nucleares estavam a apontar contra a nossa pequena ilha na famosa Crise de Outubro de 1962. Ainda na época das armas inteligentes, ainda que de vez em vez errem e batam a 100 ou 200 quilómetros do alvo para o qual estavam dirigidas (Risos), mas com um determinado nível de precisão; sempre a inteligência do homem será superior a qualquer uma dessas armas sofisticadas (Aplausos e exclamações).
Torna-se uma questão de conceitos a forma em que é preciso lutar, a doutrina da defesa do nosso país que hoje se sente mais forte, porque teve que aperfeiçoar esses conceitos, e temos chegado à ideia de que ao final, um final para os invasores, a luta seria corpo a corpo, de homem para homem, e de mulher para invasor, ora seja homem, ora mulher (Aplausos prolongados).
Foi preciso realizar uma batalha mais difícil, e será preciso continuar a o fazer contra esse império poderosíssimo, e é a luta ideológica que incessantemente teve lugar, e que eles aumentaram com todos seus recursos, ainda mais depois do derrubamento do bloco socialista, quando nós decidimos, firmemente confiados nas nossas ideias, continuar sozinhos para avante. E quando digo sozinhos, penso em entidades estatais, sem nunca esquecer o imenso e invencível apoio solidário dos povos que sempre nos acompanhou, e por isso nos sentimos mais obrigados a lutar (Aplausos).
Temos cumprido honrosas missões internacionalistas. Mais de
500 000 compatriotas nossos têm participado em duras e difíceis missões desse carácter, filhos daquele povo que não sabia ler nem escrever, e atingiu esse grau tão alto de consciência como para ser capaz de derramar suor e até o seu sangue por outros povos; em duas palavras, por qualquer povo do mundo (Aplausos).
A partir da etapa do período especial que se iniciava, dissemos: "Nosso primeiro dever internacionalista neste momento é defender esta trincheira", a trincheira de que falara Martí nas últimas palavras que escreveu na véspera da sua morte, quando disse que em silêncio tinha tido que ser o objectivo fundamental de sua luta, porque Martí não apenas era muito martiano, mas que era ainda mais bolivariano do que martiano (Aplausos). E esse objectivo que se traçou, segundo suas palavras textuais, era "impedir a tempo com a independência de Cuba que se estendam pelas Antilhas os Estados Unidos e caiam, com essa grande força, sobre as nossas terras da América. Quanto fiz até hoje e farei, é para isso" (Aplausos).
Foi seu testamento político, quando confessa o anseio de sua vida: evitar a queda daquela primeira trincheira que tantas vezes quiseram ocupar os vizinhos do Norte, e que ainda está e estará ali, com um povo disposto a lutar até a morte para impedir que caia essa trincheira da América (Aplausos); um povo que seria capaz de defender, inclusive, a última, porque quem defende a última trincheira e não permite que ninguém se apodere dela, desde esse mesmo instante tem começado a obter a vitória (Aplausos).
Companheiras e companheiros —permitam-me que lhes chame
assim—, cá neste momento somos isso, e acho que também aqui, neste momento, estamos a defender uma trincheira (Aplausos), e trincheiras de ideias, perdoem-me por recorrer mais uma vez a Martí, como ele disse, valem mais do que trincheiras de pedra (Aplausos).
Cá temos que falar de ideias, e volto àquilo que dizia, que muitas coisas passaram nestes 40 anos, porém o mais transcendental é que o mundo tem mudado. Não é este mundo de hoje em que lhes falo, àqueles que naquele dia não tinham nascido e muitos estavam muito longe de nascer; não é nada parecido com aquele mundo.
Tentei procurar um jornal para ver se tinha alguma notícia daquele comício na universidade. Afortunadamente conservamos na íntegra o discurso na Praça do Silêncio. Com aquela febre revolucionária com que descemos das montanhas, havia apenas uns dias, estávamos a falar dos processos de libertação na América Latina e colocando o principal ênfase na libertação do povo dominicano das garras do Trujillo. Acho que aquele tema ocupou quase todo o tempo, ou uma parte do tempo daquele encontro, com um entusiasmo enorme por parte de todos.
Hoje cá não poderíamos falar num tema como esse. Acontece que hoje não existe um povo para ser libertado, hoje não existe um povo para ser salvado; hoje há um mundo, hoje há uma humanidade para ser libertada e para ser salvada (Aplausos), e essa não é a nossa tarefa, é a tarefa de vocês (Aplausos).
Naquela altura não existia um mundo unipolar, uma super-potência hegemónica, única; hoje temos o mundo e a humanidade sob a dominação de uma enorme super-potência, e ainda assim estamos convencidos de que ganharemos a batalha (Aplausos), sem optimismo panglossiano -acho que essa é uma palavra que por vezes os escritores usam (Risos)-, mas porque a gente tem a certeza de que se solta este caderno (Mostra o caderno) em questão de segundos vai cair; de que se não existisse esta mesa, este caderno cairia no chão, e está a desaparecer a mesa sobre a que se assenta, objectivamente, essa super-potência que rege o mundo unipolar (Aplausos).
São razões objectivas, e tenho a certeza que a humanidade colocará toda a parte subjectiva indispensável. Para tal não precisa de armas nucleares nem de guerras grandes; precisa é de ideias (Aplausos). Digo-o em nome desse pequeno país do qual falávamos há pouco, que tem sustentado a luta firmemente, sem hesitar, durante 40 anos (Aplausos).
Vocês diziam, invocando —para embaraço meu— o nome pelo qual sou conhecido -refiro-me ao nome de Fidel, visto que não tenho realmente outro título; compreendo que o protocolo obrigue a chamar Excelentíssimo Senhor Presidente, essas e outras coisas assim (aplausos e exclamações de "Fidel, Fidel!") — e quando os escutei repetir aquilo de "Fidel, Fidel, o quê tem Fidel que os americanos não podem con ele?" (Exclamações de: "Fidel, Fidel, o quê tem Fidel, que os americanos não podem com ele?"), então, pensei, e me dirigi ao meu vizinho à direita, quero dizer, à direita geográfica, não é? (Risos e exclamações.) —alguns estão a fazer acenos por aí que não percebo bem, mas eu disse que cá estamos todos na mesma unidade de combate (Aplausos)—, e me passou pela mente dizer-lhe: Caramba!, realmente deveria perguntar-se: O quê é que têm os americanos que não podem com ele? (Risos e aplausos), e se em lugar de "ele", dizerem: O quê é que têm os americanos que não podem com Cuba?, seria mais justo (Aplausos). Sei que usam-se palavras para simbolizar idéias. É assim como o entendo sempre, não me atribuo jamais, nem me posso atribuir tais méritos (Exclamações de: "Viva Fidel!").
Sim, todos temos esperanças de viver, todos! (Aplausos), nas ideias pelas quais lutamos, e com a convicção de que aqueles que vêm detrás de nós serão capazes de levá-las a cabo, ainda que há de ser —não deve ocultar-se— mais difícil a tarefa de vocês que aquela que nos coube a nós.
Dizia-lhes que estamos a viver num mundo muito diferente. É a primeira coisa que temos o dever de compreender. Já explicava determinadas características políticas. Aliás, trata-se de um mundo globalizado, realmente globalizado, um mundo dominado pela ideologia, as normas e os princípios da globalização neoliberal.
A globalização não é, ao nosso ver, um capricho de ninguém, nem sequer é um invento de alguém. A globalização é uma lei histórica, é uma consequência do desenvolvimento das forças produtivas —e desculpem-me que empregue essa frase, que talvez ainda possa assustar alguns por causa do seu autor—, um produto do desenvolvimento da ciência e da técnica em tal grau que ainda, o autor da frase, Carlos Marx (Aplausos), que tinha uma grande confiança no talento humano, possivelmente não foi capaz de imaginar.
Há algumas outras coisas que me fazem lembrar ideias básicas daquele pensador entre os grandes pensadores. Acontece que vem-me à mente a ideia de que, inclusive, o que concebeu como ideal para a sociedade humana, jamais poderia ser realidade —e vê-se cada vez com maior claridade— se não acontecesse num mundo globalizado. Nem por um segundo imaginou que na pequeníssima ilha de Cuba —para citar um exemplo— pudesse dar-se a tentativa de uma sociedade socialista, ou a construção do socialismo, ainda menos junto de tão poderoso vizinho capitalista.
Ora bom, é verdade, o temos intentado; ainda mais, fizemo-lo e conseguimos defendê-lo. E também conhecemos 40 anos de bloqueio, ameaças, agressões, sofrimentos.
Hoje, como estamos sozinhos, toda a propaganda, os meios de divulgação massiva que controlam no mundo, os Estados Unidos os encaminha na sua guerra política e ideológica contra o nosso processo revolucionário, da mesma forma que emprega seu imenso poder em todos os domínios, nomeadamente no domínio económico, e a sua influência política internacional na sua guerra económica contra Cuba.
Diz-se bloqueio, mas bloqueio não significa nada. Tomara tivéssemos um bloqueio económico: o que o nosso país tem vindo a suportar durante muito tempo é uma verdadeira guerra económica. Querem que o demonstre? Vão a qualquer lugar do mundo, a uma fábrica de uma empresa norte-americana a comprarem um boné ou um lenço para exportar para Cuba, ainda que sejam produzidos pelos cidadãos desse país, e as matérias primas sejam originárias do próprio país, o governo dos Estados Unidos, a milhares de milhas de distância lhes proíbe vender o boné ou vender o lenço. Isso é bloqueio ou guerra económica?
Querem um exemplo adicional?: se por acaso algum de vocês ganhar o lotaria —não sei se aqui haverá lotaria— ou se encontrar um tesouro —isso é possível—, e diz que vai construir uma pequena fábrica em Cuba, com certeza terá logo a visita de um funcionário importante da Embaixada norte-americana, e até do próprio Embaixador norte-americano para tentar persuadí-lo, pressioná-lo ou ameaçá-lo com represálias para que não faça investimentos com esse tesourinho numa pequena fábrica em Cuba. Isso é bloqueio ou guerra económica?
Também não permitem que seja vendido um medicamento a Cuba, ainda que esse medicamento seja indispensável para salvar uma vida, e não são poucos os exemplos que temos tido de casos semelhantes.
Temos resistido essa guerra, e como em toda batalha, seja lá militar, política ou ideológica, há baixas. Existem aqueles que podem ser confundidos, e o são, ou abrandados, ou enfraquecidos com a mistura das dificuldades económicas, as privações materiais, a exibição do luxo das sociedades de consumo, e as ideias podres bem edulcoradas sobre as vantagens fabulosas do seu sistema económico, a partir do mesquinho critério de que o homem é um animalzinho que só se move quando lhe colocam diante uma cenoura ou é batido com um chicote. Poderíamos dizer que é sobre essa base que eles apoiam toda a sua estratégia ideológica.
Há baixas, mas também, como em todas as batalhas e em todas as lutas, nos outros se desenvolve a experiência, tornam-se mais veteranos os combatentes, multiplicam as suas qualidades e permitem manter e elevar a moral e a força necessária para continuarem a lutar.
Estamos a ganhar a batalha das ideias (Aplausos); porém, o campo das batalhas não é apenas a nossa pequena ilha, ainda que na pequena ilha é preciso lutar. Hoje o campo das batalha é o mundo, está em todas partes, em todos os continentes, em todas as instituições, em todas as tribunas. Isso é o melhor que tem a batalha globalizada (Risos e aplausos). É preciso defender a pequena ilha, e ao mesmo tempo combater em todos os cantos do imenso mundo que eles dominam ou pretendem dominar. Dominam-no em muitos campos quase de forma total, mas não é em todos os campos, nem de igual forma, nem absolutamente em todos os países.
Eles descobriram armas muito inteligentes; mas os revolucionários descobrimos uma arma mais poderosa, muito mais poderosa!: descobrimos que o homem pensa e sente (Aplausos). O mundo nos ensina isso, também as inúmeras missões internacionalistas que num terreno ou noutro temos cumprido no mundo.
Bastaria apontar uma cifra só: 26 000 médicos cubanos têm participado nelas; aquele país ao qual lhe deixaram apenas 3 000 dos 6 000 médicos com que contava aquando da vitória da Revolução, muitos deles sem emprego, mas sempre com o desejo de emigrar para obter tais rendas e tais ordenados. Daqueles 3 000 que nos deixaram, a Revolução foi capaz de multiplicá-los e de ir formando médicos e mais médicos que começaram a estudar na primeira classe ou na segunda classe, nas escolas que logo foram criadas em todo o país, e foi tal seu espírito de sacrifício e solidariedade, que 26 000 deles têm cumprido missões internacionalistas (Aplausos), da mesma maneira como já indiquei que centenas de milhares de compatriotas têm actuado como profissionais, educadores, construtores e combatentes. Sim, combatentes, e o dizemos com orgulho (Aplausos), visto que combater contra os soldados fascistas e racistas do apartheid, e inclusive, contribuir para a vitória dos povos da África que viam naquele sistema a sua maior afronta, é e será sempre um motivo de orgulho (Aplausos).
Mas nesse esforço ignorado, muito ignorado, temos aprendido muito dos povos; aprendemos a conhecer os povos e as suas qualidades extraordinárias, e entre outras coisas, temos aprendido não apenas através de ideias abstractas, mas da vida prática e quotidiana, que nem todos os homens somos iguais nos nossos rasgos físicos, mas todos os homens somos iguais no que se refere ao talento, os sentimentos e as outras virtudes necessárias para demonstrar que na capacidade moral, social, intelectual e humana todos somos geneticamente iguais (Aplausos).
Esse foi o grande erro de muitos que acreditaram ser uma raça superior. A vida nos ensinou, dizia-lhes, muitas coisas, e isso alimenta a nossa fé nos povos, a nossa fé nos homens. Isso não o lemos num pequeno livro, vivemo-lo, tivemos o privilégio de vivê-lo (Aplausos).
Resultei um bocado extenso nestas primeiras ideias, por causa do folheto extraviado e dos problemas do microfone (Risos), é por isso que deverei ser mais breve noutros temas.
Sim, é o meu dever ser mais breve, entre outras coisas, por interesse pessoal: depois tenho que rever o quê foi que disse aqui (Risos), ver se me faltou uma vírgula, um ponto, se um dado estava errado. E digo-lhes que por cada hora de discurso falado, que pode parecer muito fácil, são necessárias duas ou três horas de revisão, ver de novo. Pode faltar uma palavra. Jamais suprimo uma ideia que tenha expressado, mas às vezes é necessário completá-la, ou acrescentar um conceito complementar, porque não é a mesma coisa a linguagem falada do que a escrita. Se eu apontar para o meu vizinho, aquele que leia isso num jornal não percebe nada (Risos), ou não se entende quase nada; a linguagem escrita apenas tem os signos de admiração e as aspas (Risos), nem o tom, nem as mãos, nem a alma que é colocada nas coisas, podem ser transmitidas através da escrita.
Eu tive a necessidade de descobrir essa diferença. E agora temos muito cuidado de transcrever as coisas e revê-las, visto que os temas que são discutidos têm transcendência, objectivamente, têm importância, e além disso, porque é preciso ter cuidado numa infinidade de coisas que vocês nem imaginam.
A dada altura, quando pensava no comício que iria ter convosco às 5:00 horas da tarde, perguntava-me: De quê lhes falo aos estudantes? (Aplausos.) Não posso mencionar nomes, salvo excepções; não posso apenas mencionar países, porque às vezes, quando aponto para alguma coisa com a melhor boa fé do mundo, e como ilustração de uma ideia, corro o risco de que imediatamente tirem do contexto o que eu disse, seja transmitido pelo mundo fora, e nos possam criar um montão de problemas diplomáticos (Aplausos). E como devemos trabalhar unidos nesta luta global, não lhe podemos facilitar ao inimigo e aos seus bem desenhados e eficientes mecanismos de propaganda, a realização de sua constante tarefa de criar confusão e desinformação, visto que já é bastante a que têm criado, mas não suficiente, percebem?, não é suficiente (Risos). Portanto, devemos limitar-nos muito por essas razões, e é por isso que lhes peço perdão.
Não será necessário explicar aqui muito o que é o neoliberalismo. Como sintetizar? Bom, eu diria, por exemplo, alguma coisa: A globalização neoliberal quer transformar todos os países, especialmente todos os nossos países, em propriedades privadas.
O que é que nos deixarão a partir dos seus enormes recursos financeiros?, visto que eles não têm acumulado apenas imensas riquezas com a pilhagem e a exploração do mundo, mas, inclusive, obrando o milagre ao qual aspiraram os alquimistas na Idade Média, transformar o papel em ouro, ao mesmo tempo que foram capazes de converter o ouro em papel (Risos). E com isso o compram tudo, tudo menos as almas, menos —para o dizer com mais correcção— a maioria esmagadora das almas. Compram recursos naturais, fábricas, sistemas completos de comunicações, serviços, etc. Estão a comprar até terras pelo mundo fora, achando que como são mais baratas do que em seus próprios países, é um bom investimento para o futuro.
E eu me pergunto: O que é que nos querem deixar depois de transformar-nos praticamente em cidadãos de segunda classe, em párias —seria melhor dizer— nos nossos próprios países? Querem converter o mundo numa zona franca gigantesca —talvez se veja ainda mais claro assim—, visto que: O que é uma zona franca? Um lugar com características especiais, onde não se pagam impostos, as matérias primas são trazidas, as partes, os componentes são montados, ou são produzidas mercadorias variadas, sobre tudo naqueles ramos que precisam de abundante mão de obra barata, pela qual muitas das vezes pagam não mais de 5 % do salário que pagam nos seus países, e a única coisa que nos deixam são esses salários minguados.
Uma coisa ainda mais triste: Já vi como puseram a concorrer a muitos dos nossos países, para ver quem lhes dão mais facilidades e mais isenções de impostos para investir. Eles puseram em concorrência aos países do Terceiro Mundo, pelos investimentos e as zonas francas.
Há países —conheço-os— em tal situação de pobreza e desemprego, que tiveram que estabelecer dezenas de zonas francas inclusive, como opção preferível, dentro da ordem mundial estabelecida, antes de nem sequer contar com as fábricas das zonas francas, que dão um emprego com uma determinada remuneração, ainda que ela atinja 7%, 6% ou 5% ou menos do salário que deveriam pagar os proprietários dessas fábricas nos seus países de origem.
Nós falamos nisso na Organização Mundial do Comércio, em Genebra, há alguns meses. Querem nos transformar numa imensa zona franca, sim, nisso; com seu dinheiro e suas tecnologias, compra-lo-ão tudo. Já veremos quantas linhas aéreas ficam como sendo propriedades nacionais, quantas linhas de transporte marítimo, quantos serviços permanecerão como propriedades do povo ou da nação.
É o porvir que nos está a oferecer a globalização neoliberal, não julguem que é apenas aos trabalhadores, mas também, aos empresários nacionais, aos pequenos e medianos proprietários que terão de concorrer com as tecnologias das transnacionais, seus equipamentos sofisticados, as suas redes mundiais de distribuição, e procurarem mercados, sem contar com os abundantes créditos comerciais que seus competidores poderosos podem utilizar para vender seus produtos.
Nós, em Cuba, podemos dispor de uma magnífica fábrica de geladeiras, por exemplo. Temos uma, mas não é magnífica, e está longe de ser a mais moderna do mundo. Lá é de grande utilidade, como é lógico, com o calor crescente que temos no trópico. Suponhamos que outros países do Terceiro Mundo produzam frigoríficos de uma qualidade aceitável, e inclusive, com um custo menor. As competidoras deles renovam constantemente o desenho, investem quantidades fabulosas para prestigiar suas marcas; fabricam em muitas zonas francas com salários baixos, ou em qualquer sítio, isentas de impostos, capital abundante ou mecanismos financeiros para outorgarem créditos que são amortizados num ano, em dois, em três, ou nos que forem; mercados saturados de objectos electrodomésticos que são fruto da anarquia e o caos do escoamento dos capitais de investimento a nível mundial, sob a palavra de ordem generalizada de crescer e desenvolver-se na base das exportações como aconselha o FMI. Que espaço resta para as industrias nacionais?, para quem e como irão exportar?, onde é que estão os consumidores potenciais entre os milhares de milhões de pobres, esfomeados e desempregados que habitam grande parte do nosso planeta? Será necessário esperar a que todos eles adquiram uma geladeira, um aparelho de televisão, um telefone, um aparelho de ar condicionado, um automóvel, electricidade, combustível, um computador, uma casa, uma garagem, um subsídio contra o desemprego, ações na bolsa e uma pensão assegurada? Esse é o caminho do desenvolvimento, como nos afirmam milhões de vezes por todos os meios possíveis? O quê ficará do mercado interno se lhes for imposta uma redução acelerada das tarifas alfandegárias, aliás, fonte importante das receitas orçamentárias de muitos países do Terceiro Mundo?
Os teóricos do neoliberalismo não conseguiram resolver, por exemplo, o grave problema do desemprego na maioria esmagadora dos países ricos, muito menos ainda naqueles que marcham à procura do desenvolvimento, e jamais lhe encontrarão uma solução sob tão absurda concepção. É uma imensa contradição do sistema que enquanto mais investem e mais se tecnificam, mais gente lança para as ruas sem emprego. A produtividade do trabalho, os equipamentos mais sofisticados nascidos do talento humano, que multiplicam as riquezas materiais, e ao mesmo tempo a miséria e os despedimentos, de quê lhe servem à humanidade? Acaso para reduzir as horas de trabalho, dispor de mais tempo para o descanso, o divertimento, o desporto, a superação cultural e científica? Impossível, as sacrossantas leis do mercado e os princípios cada vez mais imaginários do que reais da concorrência num mundo transnacionalizado e megafusionado cada dia mais, não o admitem sob nenhum conceito. Afinal, quem concorre e entre quem concorrem? Gigantes contra gigantes, que tendem para a fusão e o monopólio. Não há lugar, nem canto do mundo para os demais supostos actores da concorrência.
Para os países ricos, industrias de ponta; para os trabalhadores do Terceiro Mundo, confeccionar jeans, T-shirts, roupas, sapatos; semear flores, frutas exóticas e outros produtos de procura crescente nas sociedades industrializadas, porque ali não podem ser cultivados. Ainda que sabemos que nos Estados Unidos da América, por exemplo, plantam maconha até em estufas (Risos e aplausos), ou no quintal das casas, e que o valor da maconha que produzem é superior ao de toda a sua produção de milho, a pesar de ser o maior produtor de milho do mundo (Risos). Em resumo, os laboratórios deles são ou terminarão sendo os maiores produtores de estupefacientes do planeta, por enquanto sob a etiqueta de sedativos, anti-depressivos e outros inputs de pílulas e produtos que os jovens têm aprendido a combinar e misturar em inúmeras formas.
No feliz mundo desenvolvido os trabalhos duros da agricultura, como por exemplo recolher tomates, para o que ainda não foi inventada nenhuma máquina perfeita, o robot que vá e os escolha segundo seu grau de maturidade, tamanho e outras características; limpar ruas, e outras tarefas ingratas que nas sociedades de consumo ninguém quer realizar, como são resolvidas? Ah!, para isso estão os imigrantes do Terceiro Mundo. Outros não realizam esse tipo de trabalho. E para aqueles que ficamos convertidos em estrangeiros dentro das nossas próprias fronteiras, já eu o disse, confeccionar jeans e coisas desse tipo, mas nos colocam, em virtude de suas leis económicas "maravilhosas" a produzir tantas calças como se o mundo já contasse com 40 000 milhões de habitantes e cada um deles tivesse o dinheiro suficiente para comprar-se o jeans, que não estou a criticar, vai muito bem com os jovens e ainda mais com as jovens (Risos e aplausos). Não, não estou a criticar essa roupa, estou a criticar o trabalho que querem nos deixar, que não tem nada a ver, em absoluto, com a alta tecnologia. De tal maneira que sobrarão as nossas universidades, ou ficarão para produzir pessoal técnico a baixo custo para o mundo desenvolvido.
Nestes dias terão lido na imprensa que os Estados Unidos, devido às necessidades das suas industrias de computação, electrónica, etc., propõe-se adquirir no mercado internacional, diga-se melhor, no Terceiro Mundo, e conceder vistos a 200 000 trabalhadores bem qualificados para as suas industrias de ponta. Portanto, tenham cuidado, porque estão a procurar pessoas capacitadas (Risos), desta vez não é para recolher tomates. Como eles não estão demasiado alfabetizados, e muitos o podem comprovar quando eles confundem o Brasil com a Bolívia, ou a Bolívia com o Brasil (Risos e aplausos); ou quando são feitos inquéritos e não conhecem nem sequer muitas coisas dos próprios Estados Unidos, nem sabem se um país latino-americano do qual têm ouvido falar, está na África, ou na Europa —e não estou a exagerar— (Risos e aplausos); não têm todas as lumieiras, ou ostrabalhadores bem qualificados para suas industrias de ponta, e então vêm ao nosso mundo e recrutam alguns que depois se perdem para sempre.
Onde é que estão os melhores cientistas dos nossos países? Em que laboratórios? Qual dos nossos países tem laboratórios para todos os cientistas que poderia formar? Quanto lhe podemos pagar a esse cientista, e quanto lhe podem pagar eles?
Onde estão? Conheço muitos latino-americanos eminentes que lá estão. Quem os formou? Ah!, Venezuela, Guatemala, o Brasil, Argentina, qualquer país latino-americano; mas não têm possibilidades na sua própria pátria. Os países industrializados têm o monopólio dos laboratórios, do dinheiro, contratam-nos e arrebatam-nos às nações pobres. Mas não apenas cientistas, também os desportistas. Pois é, eles gostariam de comprar os nossos jogadores de beisebol da mesma forma em que eram leiloados antigamente os escravos numa tarimba dessas, sei lá como é que as chamam (Risos e aplausos).
São pérfidos. Como sempre haverá uma alma que possa ser tentada
—isso o diz a Bíblia, e entre os primeiros seres humanos, que se suponha que deviam ser os melhores, não é?, porque não teriam maldade, nem conheciam as sociedades de consumo, nem existia o dólar (Risos)—, de improviso, até um atleta que não é de primeiríssima categoria, lhe pagam alguns milhões, quatro, cinco ou seis, lhe montam uma publicidade enorme, e como parece que são tão maus os jogadores das Grandes Ligas, obtêm alguns sucessos. Não tenho intenção nenhuma de ofender os atletas profissionais norte-americanos, são pessoas que trabalham duro, muito encorajados. Mercadorias que também se compram e vendem no mercado, ainda que a um preço elevado, mas devem ter algumas fraquezas no treino, porque eles importam de contrabando alguns lançadores cubanos, por exemplo, que podem estar na primeira, segunda ou terceira categoria, ou um inter-base, um terceiro base, chegam lá e o lançador elimina os melhores ao taco, e o inter-base não deixa passar uma bola (Aplausos e exclamações).
Quase seríamos ricos se fizermos um leilão de jogadores de beisebol cubanos (Risos e aplausos). Já não querem pagar jogadores norte-americanos porque lhes custam muito caros. Têm organizado academias nos nossos países para os formar a muito baixo custo, e pagar-lhes menos salários, ainda que é um salário de milhões por ano. Junto disso, toda a propaganda da televisão, para além de uns automóveis com um tamanho daqui até lá (Aponta), e umas belíssimas mulheres de todas as etnias, associadas à publicidade dos automóveis (Risos), e o resto da propaganda comercial que vocês vêem nalgumas revistas de mexericos e do consumismo, podem atrair a mais de um dos nossos compatriotas.
Em Cuba não gastamos nem papel nem recurso algum nessas frivolidades publicitárias. As muito poucas vezes que assisto por necessidade a televisão norte-americana apenas as posso suportar, visto que de três em três minutos param para incluir um anúncio comercial, exibir um homem a fazer exercícios numa bicicleta estática, que é a coisa mais aborrecida do mundo (Aplausos e exclamações). Não digo que seja mau, digo que é aborrecido. Param, interrompem qualquer programa, até os seriados melodramáticos em seus instantes mais sublimes de amor (Risos).
A Cuba chegam alguns melodramas do exterior, não o nego, porque nós não somos capazes de produzir os necessários, e alguns dos que são produzidos em países da América Latina seduzem de tal maneira o nosso público que até param o trabalho. Da América Latina nos chegam por vezes bons filmes, mas quase tudo o que circula no mundo é de pura manufactura ianque, cultura enlatada.
Na verdade, no nosso país, o pouco papel de que dispomos o dedicamos a livros de textos e aos nossos poucos jornais, com poucas páginas. Não podemos empregar recursos em fazer essa revista de papel suave, especial —não sei como se chama—, com muitas ilustrações, que lêem os mendigos nas ruas de qualquer uma das nossas capitais, anunciando-lhes esse luxuoso automóvel com suas acompanhantes femininas, e até um iate, ou coisas desse tipo, não é? (Risos.) Assim vão envenenando a gente com essa propaganda, de tal maneira que até os mendigos são influenciados de forma cruel e postos a sonhar com o céu, impossível para eles, que o capitalismo oferece.
No nosso país —digo-lhes— nos dedicamos a outras coisas; mas eles influem, é claro, com a imagem de um tipo de sociedade que para além de alienante, desigual e injusta, é insustentável económica, social e ecologicamente.
Acostumo a colocar o exemplo de que se o modelo de consumo é que cada cidadão de Bangladesh, da Índia, Indonésia, Paquistão ou China tenha um automóvel em cada casa -e me desculpam os que cá têm automóveis; parece que já não há mais remédio, são muitas as avenidas e compridas as distâncias. Não estou a criticar, é a advertência que faço a respeito de um modelo impossível de aplicar num mundo que está ainda por se desenvolver (Risos). Eles me compreenderão bem, porque Caracas já não dá também para muitos outros automóveis. Será preciso construir avenidas de três ou quatro andares (Risos), sabem? Imagino que se na China fizerem isso, os 100 milhões de hectares de que dispõem para produzir alimentos, se transformem em rodovias, garagens, estacionamentos de automóveis e não ficaria lugar para cultivar um grão de arroz.
É louco, inclusive, caótico e absurdo, o modelo de consumo que lhe estão a impor ao mundo (Aplausos).
Não pretendo que este planeta seja um convento de monges caturjos (Risos), mas penso que este planeta não tem outra alternativa do que definir quais devem ser os padrões ou modelos de consumo atingíveis e com acesso nos quais deve ser educada a humanidade.
Cada vez são menos os que lêem um livro. E porquê privar o ser humano do prazer de ler um livro, por exemplo, e de outros muitos no campo da cultura e do divertimento, no âmbito de um enriquecimento não apenas material mas também espiritual? Não estou a pensar em homens a trabalharem como na época de Engels, 14 ou 15 horas por dia. Estou pensando em homens a trabalharem quatro horas. Se a tecnologia o permitir, então, para que o fazer durante oito? O mais lógico e elementar é que enquanto maior produtividade houver, menos esforço físico ou mental, menos desemprego e mais tempo livre deve ter o homem (Aplausos).
Chamemos homem livre àquele que não tem que trabalhar toda a semana, incluídos os sábados, domingos e duplo turno, porque não lhe alcança o dinheiro, e correndo velozmente a todas horas, ora num metrô, ora num autocarro pelas grandes cidades. A quem irão contar a história de que esse homem é livre? (Aplausos).
Se os computadores e máquinas automáticas podem fazer milagres na criação de bens materiais e serviços, por que o homem não se poderia servir da ciência que tem criado com sua própria inteligência para o bem-estar humano?
Por que devido exclusivamente a razões comerciais, lucros e interesses de elites super-privilegiadas e poderosas, sob o império de leis económicas caóticas e instituições que não são eternas, nem o foram, nem nunca o serão, como as famosas leis do mercado tornado em objecto de idolatria, em palavra sacrossanta que a todas horas se menciona, todos os dias, o homem de hoje tem que suportar fome, desemprego, morte prematura, doenças curáveis, ignorância, incultura e todo tipo de calamidades humanas e sociais, se pudessem ser criadas todas as riquezas necessárias para satisfazer necessidades humanas razoáveis, que sejam compatíveis com a preservação da natureza e a vida no nosso planeta? É necessário meditar; é preciso definir. Obviamente, parece elementarmente razoável que o homem disponha de alimentação, saúde, tecto, roupa, educação, transporte racional adequado, sustentável e seguro, cultura, divertimento, uma ampla variedade de opções para a sua vida, e mil coisas mais que pudessem ser exeqüíveis para o ser humano, e não, é óbvio, um Jet particular, e um iate para cada um dos 9 500 milhões de seres humanos que em não mais de 50 anos estarão a habitar o mundo.
Têm deformado a mente humana.
Ainda bem que na época do Éden e da arca de Noé que nos narra o Antigo Testamento, não existiam essas coisas. Imagino que viviam um pouco mais tranquilos (Risos). Ora bom, se tiveram um dilúvio, também nós o temos com farta frequência. Vejam só o que acaba de acontecer na América Central, e com as mudanças de clima ninguém sabe se terminaremos comprando, adquirindo ou fazendo filas à entrada de uma arca (Risos).
É assim, lhe inculcaram tudo isso a gente. Alienaram milhões, dezenas de milhões, e centenas de milhões de pessoas, e fazem-nas sofrer tanto mais quanto menos são capazes de satisfazer suas necessidades elementares, visto que nem sequer têm um médico, uma escola.
Falei da fórmula anárquica, irracional e caótica imposta pelo neoliberalismo: investir centenas de milhares de milhões sem ordem nem concerto algum; dezenas de milhões de trabalhadores a produzirem as mesmas coisas: televisores, componentes de computadores, clips ou chips, como se chamem (Risos), infinidade de artigos e objectos, incluídos montes de automóveis. Todos a fazerem a mesma coisa.
Criaram o dobro da capacidade necessária para produzir automóveis. Que clientes para os automóveis? Estão na África, na América Latina, e em outros muitos lugares do mundo, só que não têm nem um tostão para adquiri-los; nem gasolina, nem auto-estradas, nem oficinas, que acabariam por arruinar ainda mais os países do Terceiro Mundo, esbanjando recursos dos quais precisa o desenvolvimento social, e destruindo ainda mais a natureza.
O sistema capitalista desenvolvido tem ocasionado já um grande dano à humanidade, criando padrões de consumo insustentáveis nos países industrializados, e plantando sonhos impossíveis no resto do planeta. Tem envenenado a atmosfera, e esgotado enormes recursos naturais não renováveis, dos quais a espécie humana vai ter grande necessidade no futuro. Não imaginem, por favor, que estou a conceber um mundo idealista, impossível, absurdo. Estou tentando meditar a respeito do que pode ser um mundo real, e um homem mais feliz. Não seria preciso mencionar uma mercadoria, bastaria mencionar um conceito: a desigualdade torna já infeliz o 80% dos habitantes da Terra, e não é mais do que um conceito.
É preciso procurar conceitos, e necessitamos de ideias que permitam um mundo viável, um mundo sustentável, um mundo melhor.
Serve-me de distração que escrevem muitos dos teóricos do neoliberalismo e da globalização neoliberal. Realmente tenho pouco tempo de frequentar o cinema, quase nunca, de ver vídeos, ainda que sejam bons, há alguns bons. Leio artigos destes senhores para me divertir (Risos), seus analistas, seus comentaristas mais agudos, mais sábios, os vejo envolvidos numa quantidade de contradições, de confusão, inclusive desespero, tentando quadrar o círculo; deve ser para eles algo terrível (Aplausos).
Lembro-me que uma vez me mostraram uma figurinha que era quadrada, tinha duas linhas acima assim, uma no meio e outra para abaixo (Aponta), a questão era passar-lhe por em cima com o lápis sem levantá-lo nem sequer uma vez. Nem se sabe o tempo que perdi (Risos) a tentar fazê-lo, em lugar de realizar o trabalho de casa, estudar matemática, língua e outras coisas, porque quando não existiam os joguinhos esses que inventou a industria para entreter os rapazes no decurso das aulas, e para que reprovem na escola, já desde a minha época inventávamos nós próprios coisas nas quais perdíamos bastante tempo.
Contudo, me divirto, gozo, desfruto, pelo menos lhes agradeço isso (Risos e aplausos); mas também lhes agradeço aquilo que me ensinam. E sabem quem são os que mais feliz me fazem sentir nos seus artigos e análises? Ah!, os mais conservadores, os que não querem ouvir falar do Estado, nem sequer mencioná-lo! Os que anseiam um banco central na Lua (Risos), para que a nenhum humano lhe passe pela mente baixar ou subir os juros; é incrível.
Esses são os que me fazem sentir mais feliz, porque quando eles dizem algumas coisas, eu penso: Ter-me-ei equivocado, este artigo não seria escrito por um extremista de esquerda, um radical? (Risos). Mas, o que é isto?, quando vejo Soros a escrever um livro após o outro. E o último, sim, o tive que ler também, não tive outra hipótese, porque eu disse: Bom, este aqui é teórico, mas além disso é académico, e adicionalmente tem não sei quantos milhares de milhões como resultado de operações especulativas. Este homem deve saber disso, os mecanismos, os truques. Mas o título: Crise do capitalismo global, foi o nome que ele pôs, é todo um poema, o diz com grande seriedade (Risos), e ao que parece com uma convicção tal, que então me digo: Caramba!, parece que não sou o único louco neste mundo! (Risos e aplausos). Dos que exprimem inquietações semelhantes há bastante; eu lhes dedico ainda maior atenção do que aos adversários da Ordem Económica Mundial existente.
O de esquerda vai querer demonstrar de qualquer jeito que isso vai ao chão (Risos). É lógico, é o seu dever, e aliás, tem razão (Risos); mas o outro não deseja isso de maneira nenhuma. Perante catástrofes, crises, ameaças de todas classes, ficam desesperados e escrevem muitas coisas. Estão desconcertados, é o menos que se pode dizer. Perderam a fé em suas doutrinas.
Então, aqueles que decidimos resistir em solitário, e já não falo da solidão geográfica, mas quase da solidão no campo das ideias, porque os desastres trazem consequências, cepticismos que são multiplicados pela experiente e poderosa maquinaria publicitária do império e seus aliados. Tudo isso traz o pessimismo em muitas pessoas, confusão, não têm todos os elementos de juízo para analisar as situações com uma perspectiva histórica, e ficam desanimados.
Ah!, que amargos eram aqueles dias, aqueles primeiros dias, e desde antes dos primeiros dias, quando vimos muita gente mudar de casaco por aqui e por ali, realmente -e não estou a criticar ninguém, estou a criticar os casacos (Risos e aplausos). Ah!, em que brevíssimo tempo temos visto como tudo muda, e aquelas ilusões têm ficado atrás, têm durado menos —como se diz em Cuba, e não sei se aqui também— do que um doce na porta de uma escola (Risos).
Lá, na antiga URSS, chegaram com suas receitas neoliberais e de mercado, e têm ocasionado destroços incríveis, verdadeiramente incríveis!, têm despencado nações, desarticulado federações de repúblicas, económica e politicamente. Reduziram as perspectivas de vida, nalgumas delas em 14 e 15 anos; têm multiplicado a mortalidade infantil três ou quatro vezes; criaram problemas sociais e económicos que nem sequer um Dante ressuscitado seria capaz de imaginar.
Realmente é triste, e aqueles que temos tentado estar o mais informados possível daquilo que está a acontecer em todas partes —e não temos uma outra alternativa do que sabê-lo, caso contrário estaremos desorientados, conhecê-lo num maior ou menor grau, com maior ou menor profundidade—, temos uma ideia, ao nosso ver, bastante clara do desastre provocado pelo deus do mercado, suas leis e seus princípios, e as receitas do Fundo Monetário Internacional e demais instituições neo-colonizadoras ou re-colonizadoras do planeta recomendandas e impostas praticamente a todos os países, a tal extremo que, inclusive, a países ricos como os da Europa os obrigam a se juntarem e procurar uma moeda para que homens tão experientes quanto Soros não dêem cabo até da libra esterlina, outrora não longínqua rainha dos meios de troca, arma e símbolo do império dominante e dono da moeda de reserva do mundo todos esses privilégios que hoje possuem os Estados Unidos. Os ingleses tiveram que passar pela humilhação de ver cair no chão a libra esterlina.
Mesma coisa fizeram com a peseta espanhola, o franco francês, a lira italiana; jogavam apoiados no amplo poderio dos seus milhares de milhões, visto que os especuladores são jogadores que apostam com as cartas marcadas. Eles têm toda a informação, os economistas mais experientes, prémios Nobel, como aqueles dessa famosa companhia que era a mais prestigiosa dos Estados Unidos, chamada Administração de Capitais a Longo Prazo. Em inglês acho que se diz Long-Term Capital Management —perdoem-me a minha "excelente" pronúncia inglesa (Risos)—, prefiro o título em espanhol, mas está reconhecido em todas partes pelo seu nome materno, quase está castelhanizado. Com um fundo que estava à volta dos 4 500 milhões de dólares, mobilizou 120 000 milhões para os utilizar em operações especulativas.
Contava no seu quadro de pessoal com dois prémios Nobel, e os programadores mais experientes em computação, e vejam só, aqueles ilustres cavalheiros se enganaram, porque estão a acontecer tantas coisas raras que não contaram com algumas delas: se a diferença entre os bónus do tesouro a 30 anos e a 29 anos estava um bocado mais ampla do razoável, logo todos os computadores e os Nobels decidiram que havia que comprar tanto daqueles, e vender no futuro tanto dos outros. Mas resulta que tiveram problemas com a crise desatada, que também não esperavam, achavam que já tinham descoberto o milagre de um capitalismo crescente, crescente e crescente, sem uma só crise jamais... É sorte que não pensaram nisso há dois mil ou três mil anos atrás! Tivemos sorte no facto de que Cristóvão Colombo tardasse em descobrir este hemisfério (Risos) e que comprovasse que a Terra era redonda, e se retardassem igualmente outros avanços económicos, sociais e científicos, em que assentou suas raízes esse sistema, precisamente inseparável das crises, porque talvez já não haveriam seres humanos neste planeta. Talvez já não restaria coisa nenhuma.
Enganaram-se e perderam os da Long-Term, como são chamados familiarmente. Bom, um desastre, tiveram de ir em seu resgate violando todas as normas éticas, morais e financeiras impostas pelos Estados Unidos ao mundo, e teve que ir o presidente da Reserva Federal até ao Senado a declarar que se não salvava aquele fundo, produzir-se-ia inevitavelmente uma catástrofe económica nos Estados Unidos e no resto do mundo.
Mais outra pergunta: Que economia é esta que hoje impera, em que três ou quatro multimilionários —e não dos grandes, não Bill Gates e outros parecidos, não, Bill Gates possui quase quinze vezes o capital inicial de que dispunha a Long-Term, com o qual esta mobilizou enormes somas dos poupadores, recebendo empréstimos de mais de 50 bancos— podem produzir uma catástrofe económica nos Estados Unidos e no mundo? Ah!, afunda-se a economia internacional se não tivesse sido resgatada, e esse é o depoimento de um dos tipos mais competentes, mais inteligentes que têm os Estados Unidos, o presidente do Sistema da Reserva Federal. Este distinto senhor sabe mais de quatro coisas, o que acontece é que não as diz todas, porque parte do método consiste na falta total de transparência e fortes doses de calmante cada vez que há pânico, palavrinhas doces e encorajadoras: "tudo está muito bem, a economia marcha excelentemente", etc.; é a técnica reconhecida e aplicada sem falta. Mas o presidente da Reserva Federal teve que reconhecer perante o Senado dos Estados Unidos que se produziria uma catástrofe se não fazia o que fez.
Essas são as bases da globalização neoliberal. Contem uma menos, podem restar outras 20 do seu fraco andaime, não se preocupem. O que têm criado é insustentável!, mas estão fazendo sofrer a muita gente em muitas partes do mundo; arruinarram-se nações inteiras com a fórmula do Fundo Monetário Internacional, e continuam a arruinar países, não têm maneiras de evitar que fiquem arruinados, continuam a fazer disparates, e nas bolsas o preço das ações foi inchado, e continuam a inchá-lo até ao infinito.
Nas bolsas de valores dos Estados Unidos, mais de uma terceira parte das poupanças das famílias norte-americanas, e 50% dos fundos de pensões estão investidos em ações. Calculem uma catástrofe como a de 1929 quando apenas 5% tinha suas poupanças investidas nesses valores bursáteis. Passam um grande susto hoje, dão vinte carreiras; isso fizeram depois da crise de Agosto passado na Rússia, cujo peso no produto bruto mundial é apenas 2%, e fez cair mais de 500 pontos em um dia o Dow-Jones, indicador estrela da Bolsa de Nova Iorque; 512 pontos exactamente, e começou o corre-corre.
Realmente, o que podemos dizer dos dirigentes deste sistema imperante é que passam o dia a correr pelo mundo entre os bancos, as instituições (Risos), e quando viram o que se passou na Rússia, houve uma olimpíada de campo e pista. Reuniram-se com o Conselho de Relações Exteriores, sediado em Nova Iorque. Clinton profere um discurso a dizer que o perigo não é a inflação, mas a recessão, e em apenas uns dias, numas horas praticamente, deram um giro de 180 graus, e da ideia de elevar a taxa de juro, o que fizeram foi baixá-la. Reuniram todos os directores de bancos centrais em Washington, nos dias 5 e 6 de Outubro passados, pronunciaram discursos, fizeram-lhe sei lá quantas críticas ao FMI, acordaram supostas medidas para ver como aliviavam o perigo. Poucos dias mais tarde, o governo dos Estados Unidos reuniu o Grupo dos 7, que decidiu contribuir com 90 000 milhões de dólares para que a crise não se espalhasse pelo Brasil e através dele por toda a América do Sul, tentando evitar que o fogo atingisse as próprias bolsas super-inchadas dos Estados Unidos, visto que basta um alfinete, um pequeno buraquinho, para que o balão desinche. Reparem nos riscos que ameaçam a globalização neoliberal.
Fizeram tudo isso, e quando inclusive, alguns de nós, eu próprio pensava, o tinha dito: "Têm recursos, têm possibilidades de manobra para adiar um tempinho a grande crise", adiá-la, não evitá-la finalmente. Meditava a respeito dessa questão e disse: Parece que o têm conseguido, com todas as medidas adoptadas ou impostas: a diminuição da taxa de juros, os 90 000 milhões para apoiar o Fundo, que já não tinha fundos (Risos); os passos do Japão para fazer face à crise bancária, o anúncio brasileiro de fortes medidas económicas; o anúncio oportuno de que a economia norte-americana tinha crescido mais do previsto no terceiro trimestre. Parecia que podiam aguentar a coisa, e agora, há apenas uns dias, ficamos todos surpreendidos de novo com as notícias que chegam do Brasil sobre a situação económica que se tem criado, uma questão que nos doe realmente muito, por razões associadas a esta mesma questão, ao esforço necessário dos nossos povos para juntar forças e levar a cabo a dura luta que nos espera, visto que seria sumamente negativa para América Latina uma crise destruidora no Brasil.
Nesta altura, para além de tudo o que fizeram, os brasileiros estão a enfrentar uma situação económica complicada, quando já os Estados Unidos e os organismos financeiros internacionais tinham utilizado uma boa parte das suas receitas e munições. Passados os primeiros meses do grande susto, agora exigem novas condições e parecem mais indiferentes à sorte do Brasil.
Eles pretendem manter a Rússia à beira de um abismo. Não é um país pequeno, é o país com a maior extensão territorial do mundo, e 146 milhões de habitantes, milhares de armas nucleares, onde uma explosão social, um conflito interno ou qualquer outra coisa, pode causar danos terríveis.
São tão loucos e tão irresponsáveis esses senhores que dirigem a economia mundial, que depois de afundarem o país com as suas receitas, nem sequer pensam em utilizar um bocado desses papéis que têm impresso —porque isso é que são os bónus da tesouraria, onde os especuladores assustados se refugiam perante qualquer risco, comprando bónus do tesouro dos Estados Unidos—, não lhes passa pela mente empregar um pouco dos 90 000 milhões de apoio ao Fundo para evitar uma catástrofe económica ou política na Rússia. Não pensam noutra coisa senão exigir-lhe um montão de condições impossíveis de aplicar. Exigem-lhe que diminua orçamentos que já estão por debaixo do limite indispensável; exigem-lhe a livre conversão, o pagamento imediato de dívidas elevadas, todos aqueles requerimentos que dão cabo das reservas que lhe possam restar a qualquer país. Não pensam, não aprendem a lição; pretendem mantê-la numa situação precária, à beira de um abismo, com ajuda humanitária, a exigir condições e a criar perigos realmente sérios.
Nem ficou resolvido o problema da Rússia, país ao qual afundaram com os seus assessores e suas fórmulas, também não resolveram o do Brasil, um problema que estavam muito interessados em resolver, visto que lhes podia afectar muito. De tal maneira que a mim me parecia, por exemplo, que era a última trincheira que lhes restava às bolsas dos Estados Unidos.
Passaram o grande susto. Com algumas das medidas mencionadas conseguiram estabilizar um bocado as bolsas. Desatou-se de novo a compra e venda das ações, e novamente andam numa corrida para o espaço, criando as condições para uma crise maior, e relativamente próxima, sem saber-se as consequências que poderia trazer para a economia e a sociedade norte-americanas.
Não é possível imaginar o quê passaria se acontecer ali uma situação como a de 1929. Eles acham que os riscos de crise como a de 1929 ficaram resolvidos, e resulta que não resolveram nada. Nem sequer conseguiram deter a crise brasileira, e em consequência, podem lhe ocasionar danos a todo o processo de integração da América do Sul, a todo o processo de integração latino-americano, e aos interesses de todos os nossos países. É por isso que eu falava da má notícia recém chegada.
Mas tudo tem a sua causa, a sua explicação e, pelo hábito de atender e observar o que pensam, o que dizem, o que fazem, consegue-se adivinhar, realmente, o quê têm escondido na cabeça. Com essa gente o essencial não é acreditar naquilo que estão a dizer, mas, a partir daquilo que estão a dizer, penetrar em seu cérebro -com o menor trauma possível, coitadinhos, para não lhes fazer dano nenhum (Risos)- e saber o que estão a pensar, saber aquilo que não disseram, e por que não o têm dito.
Assim se comportam. É por isso que resulta uma questão de grande interesse, de encorajamento reflexivo e reafirmação de convicções para nós, que vivemos aqueles dias que mencionei, da incerteza, da amargura, da perda de fé nas ideias progressistas por parte de não poucos homens, ver agora como muitas verdades vão se abrindo passo, muita gente pensa mais profundamente, e que aqueles que se gabavam do fim da história e da vitória definitiva das suas concepções anacrónicas e egoístas, hoje estão em declínio e numa desmoralização que não se pode ocultar.
Estes oito anos —digamos, desde 1991, isto é, desde o desabamento da URSS, até hoje— foram anos difíceis para nós em todos os sentidos, mas neste sentido também, na ordem das ideias, dos conceitos; e agora vemos como os super-poderosos começam a reparar que julgavam ter criado um sistema e até um império para mil anos, observando que os alicerces desse império e desse sistema, dessa ordem, estão a cair.
O quê nos deixou esse capitalismo global ou essa globalização capitalista neoliberal? Não apenas a partir deste que conhecemos, mas desde a própria raiz, daquele capitalismo do qual nasceu este que actualmente impera, progressista ontem, reaccionário e insustentável hoje, através de um processo que muitos de vocês, historiadores, e ainda aqueles que o não sejam, como os estudantes de economia, devem saber disso; com uma história de 250 a 300 anos, cujo teórico fundamental publica seu livro em 1776, no mesmo ano da Declaração de Independência dos Estados Unidos, Adam Smith, tão conhecido por todos. Um grande talento, uma grande inteligência, sem dúvida. Não acho que seja um grande pecador, um culpado, um bandido; era um estudioso daquele sistema económico que tinha nascido na Europa e estava em pleno auge, que reflectiu, investigou e expôs os alicerces teóricos do capitalismo; o capitalismo daquela época, porque o de agora nem sequer o próprio Adam Smith o podia imaginar.
Naquela época de diminutas oficinas e pequenas fábricas, ele sustentava que a motivação fundamental na actividade económica era o interesse individual e que a sua busca privada e competitiva constituía a fonte máxima do bem público. Não era preciso fazer um apelo ao humanitarismo do homem, mas ao seu amor por si próprio.
A propriedade e a direcção pessoal era a única forma compatível com aquele mundo de pequenas industrias que Adam Smith conheceu. Nem sequer conseguiu ver as grandes fábricas e as impressionantes massas de trabalhadores que surgiram depois nos fins do próprio século XVIII. Muito menos imaginar as gigantescas corporações e empresas transnacionais modernas, com milhões de ações, onde aqueles que administram são executivos profissionais que nada têm a ver com a propriedade das mesmas, limitando-se de vez em vez a prestar contas aos accionistas. Eles são os que decidem que utilidades se pagam, quanto e onde se investe. Estas formas de propriedade, direcção e desfrute das riquezas nada têm a ver com o mundo que ele conheceu.
Mas o sistema continuou a se desenvolver, e tomou um considerável impulsionamento com a Revolução Industrial inglesa. Nasceu a classe operária, e surgiu quem, ao meu ver, foi o mais grande pensador —respeitando qualquer critério— no terreno económico e também político, Carlos Marx. Ninguém, inclusive, conseguiu chegar a conhecer mais sobre as leis e os princípios do sistema capitalista do que Marx. Angustiados pela crise actual, não são poucos os membros da elite capitalista que lêem a Marx, a procura de diagnósticos e remédios possíveis para seus males de hoje. Com ele tinha surgido a concepção socialista como antítese do capitalismo.
A luta entre estas ideias que simbolizaram ambos pensadores tem perdurado durante muito tempo, e ainda perdura. O capitalismo original continuou a se desenvolver sob os princípios do seu teórico mais ilustre, até chegar —poderíamos dizer— à Primeira Guerra Mundial.
Antes da Primeira Guerra Mundial já existia um certo nível de globalização, existia o padrão ouro no sistema monetário internacional.
Depois veio a grande crise de 1929, e a grande recessão que durou mais de 10 anos. Então surge com grande força outro pensador, dos quatro pilares do pensamento económico, com sua enorme transcendência política nos últimos três séculos, com a marca indelével de cada um deles, John Maynard Keynes, de ideias avançadas naquela época —não como as de Marx nem muito menos, ainda que respeitava muito a Marx, coincidente com ele nalguns conceitos—, e elabora as fórmulas que tiram os Estados Unidos da grande depressão.
Não só ele, é claro. Havia um grupo de académicos bastante coincidentes e influenciados por ele. Naquela época quase não haviam economistas, nem lhes prestavam atenção, sei lá se para bem ou para mal, depende de qual fosse (Risos). Mas aí começaram a surgir grupos bem preparados, com muita informação estatística, que faziam estudos profundos; e durante o governo de Roosevelt, num país extenuado e angustiado por uma recessão interminável, muitos deles foram membros destacados do gabinete ou de outras instituições, e as teorias de Keynes ajudaram a tirar o capitalismo da pior crise que conhecera.
Houve uma suspensão temporária do padrão ouro que depois foi restabelecido de novo por Roosevelt, se não me engano, em 1934. Sei que se manteve até 1971. Acho que durou 37 anos ininterruptos, até que chegou o senhor Nixon e o grande império nos burlou a todos (Risos).
Talvez se perguntem, com razão, por que é que estou a falar-lhes disso. Mencionei essas personagens, ainda que me falta a quarta, porque para nós é muito importante tentar conhecer bem a história do sistema que neste instante rege o mundo; a sua anatomia, os seus princípios, a sua evolução, suas experiências, para compreender com exactidão que aquela criatura, que veio ao mundo há quase três séculos, está a chegar a suas etapas finais (Aplausos). É bom sabê-lo, e quase é preciso fazer-lhe a autópsia antes que termine de falecer, para que com ele não morramos muitos, e se tardar um pouquinho mais do que deve, não morramos todos (Risos e aplausos).
Falei do padrão ouro, porque desempenhou um papel muito importante nos problemas que agora estamos a defrontar. Bem próximo do fim da Segunda Guerra Mundial se intentava estabelecer uma instituição que regulamentasse e impulsionasse o comércio mundial. Realmente existia uma situação económica desastrosa, como consequência daquela longa, destruidora e sangrenta guerra. É a altura em que surge o famoso e conhecido acordo de Bretton Woods, elaborado por alguns países, entre eles os mais influentes e os mais ricos.
Já o mais rico de todos era os Estados Unidos, que nesse momento acumulavam 80% do ouro existente no mundo, e estabeleceram uma moeda de câmbio fixa na base do ouro; o padrão ouro-dolar, poderia ser chamado assim, visto que combinaram o ouro com a nota norte-americana, que se transformou na moeda de reserva internacional. Isso lhe outorgou um poder imenso e um privilégio especial aos Estados Unidos que o têm estado usando até agora em favor dos seus próprios interesses; deu-lhe o poder de manipular a economia mundial, estabelecer as regras, dominar no Fundo Monetário, onde é preciso 85% dos votos para adoptar algum acordo, e com 17,5% eles podem bloquear qualquer decisão dessa instituição, e portanto, dominam, são praticamente donos do Fundo Monetário, dizem a última palavra, e conseguiram impor a ordem económica mundial que estamos a padecer.
Porém, Nixon fez sua batota antes: inicialmente tinham 30 000 milhões de dólares em ouro, cujo preço mantinham mediante um controlo estrito do mercado a 35 dólares a chamada onça troy. Logo começaram a fazer despesas sem impostos, guerras sem impostos, na aventura do Vietname gastaram mais de 500 000 milhões de dólares; esgotava-se-lhes o ouro, apenas contavam com 10 000 milhões, e com o passo que levavam se lhes iria acabar tudo. E num discurso -acho que foi no dia 17 de Agosto de 1971- declara paladinamente que suspendia a conversão da nota norte-americana em ouro.
Eles, mediante um controlo rigoroso do mercado, como já disse, mantinham um preço fixo para o ouro: o já mencionado de 35 dólares a onça. Se havia oferta excessiva de ouro, compravam; afinal, não lhes custava nada. Entregavam as notas aqueles e recolhiam o ouro, evitando com isso que o preço baixasse. Se havia uma procura de ouro excessiva, ameaçando com elevar o preço, faziam o contrário, vendiam o ouro das suas quantiosas reservas para que ficasse barato. Muitos países apoiavam suas moedas com reservas em ouro ou em notas norte-americanas. Pelo menos existia um sistema monetário relativamente estável para a troca comercial.
Desde o momento em que Nixon, burlando todo o mundo, a todo aquele que tinha bilhetes desses —e o mundo tinha centenas de milhares de milhões como reservas nos bancos centrais deles—, fala para todos e disse que já não teriam direito a receber em ouro físico o valor que tinha cada nota norte-americana. Fê-lo unilateralmente, mediante uma portaria presidencial ou não sei que fórmula jurídica; não era nem sequer uma decisão do Congresso. Suspende desse jeito o mais sagrado compromisso contraído mediante um tratado internacional.
Ficaram com o ouro. Depois subiu o preço. O ouro que lhes restava, com um valor de 10 000 milhões de dólares chegou a valer muito mais que os 30 000 milhões que tinham inicialmente em ouro físico. Além disso, ficaram com todos os privilégios do sistema, o valor dos seus bônus do tesouro, das suas notas que continuaram obrigatoriamente como moeda de reserva nos bancos centrais dos países, que a eles lhes custou tudo o que tiveram que exportar para recebê-los, e aos Estados Unidos foi apenas o gasto em imprimi-los. Dessa forma adquiriram um poder económico ainda maior. Em troca, começaram a desestabilizar o mundo. Como? As outras moedas entraram numa fase de oscilação, seu valor variava todos os dias. Desata-se a especulação monetária, as operações especulativas de compra e venda de moedas, que hoje alcançam magnitudes colossais, baseadas na flutuação constante dos seus valores. Um novo fenómeno tinha surgido, e já se tornou indetível.
A especulação com as moedas, que há apenas 14 anos atingia 150 000 milhões de dólares anuais, hoje alcança mais de um milhão de milhões cada dia. Reparem, não utilizo a palavra bilião porque há uma confusão entre o bilião inglês e o espanhol (Risos). O primeiro equivale a 1 000 milhões; o segundo, a um milhão de milhões. Nos Estados Unidos a essa cifra chamam-na de trilião. Acaba de surgir o "millardo", que também significa 1 000 milhões, para tentar entender-se numa verdadeira Torre de Babel de cifras e números, o que origina numerosas confusões e erros de tradução e compreensão. Eu disse, e repito para que fique bem claro, que as operações especulativas com as moedas atingem já mais de um milhão de milhões de dólares cada dia.
Cresceu duas mil vezes em 14 anos, e a base disso está na medida que adoptaram os Estados Unidos em 1971, que pôs a flutuar todas as moedas dentro de certos limites, ou a flutuarem livremente. Portanto, agora temos, o capitalismo com este novo fenómeno, que nem sequer num dos dias de maior pesadelo de Adam Smith lhe pôde passar pela mente (Risos), quando escreveu seu livro sobre a riqueza das nações.
Da mesma forma surgiram outros fenómenos novos e incontroláveis
—um de que já falei—, os fundos de cobertura. Sim, desses há centenas ou milhares. Façam um cálculo daquilo que deve estar acontecendo por aí, e pensem o que significa que o presidente da Reserva Federal dos Estados Unidos tenha dito que um deles podia ter criado uma catástrofe económica nos Estados Unidos e no mundo. Ele bem sabe; ele deve conhecer com precisão a realidade. Adivinha-se por determinados artigos de algumas revistas conservadoras, porque eles sabem, às vezes precisam dizer alguma coisa para apoiar seu argumento, mas tentam ser sumamente discretos. Porém, já não há tanta gente tola no mundo (Risos), e não é difícil perceber aquilo que eles não quiseram divulgar.
Uma frase duma revista britânica muito conhecida, a fazer crítica da medida de Greenspan pelo que tinha feito com o fundo famoso, é interessante, diz mais ou menos: Talvez Greenspan tinha alguma informação adicional. Usou realmente uma frase que agora não posso me lembrar com exactidão; ainda mais subtil. Mas podia perceber-se nessa revista que não anda a dizer coisas a mais, e é bem experimentada, que sabia mais do que dizia, e que embora não compartilhava a decisão, bem sabia por que o presidente da Reserva Federal disse: "É preciso salvar este fundo". Incontestávelmente, tanto a revista quanto Greenspan conheciam por que ele pensava que se poderia produzir uma cadeia de falências de bancos importantes em centros estratégicos.
A quarta personalidade que deixou uma marca inconfundível na última etapa de desenvolvimento do pensamento económico capitalista é Milton Friedman, pai do monetarismo estrito que hoje é aplicado por muitos países do mundo, e que de forma especial o Fundo Monetário Internacional defende; último recurso contra o fenómeno da inflação que ressurgiu com força extraordinária depois de Keynes.
Hoje há de tudo: depressão nalguns países, inflação noutros, receitas e medidas que desestabilizam os governos. Todos no mundo compreendem que todo país que é ajudado pelo Fundo Monetário Internacional, todo país ao qual pretende ajudar, é afundado economicamente e desestabilizado politicamente. Não há outra expressão melhor que aquela que diz que as ajudas do Fundo Monetário Internacional são o beijo do diabo (Aplausos).
Permitam-me frisar alguns factos que desejo que fiquem na vossa mente, que respondem à pergunta que me fiz quando disse: O quê nos deixou o capitalismo e a globalização neoliberal? Após 300 anos de capitalismo o mundo conta com 800 milhões de esfomeados, mesmo agora, nestes instantes; 1 000 milhões de analfabetos, 4 000 milhões de pobres; 250 milhões de crianças que trabalham regularmente, 130 milhões sem nenhum acesso à educação, 100 milhões que vivem na rua, 11 milhões de menores de 5 anos que morrem cada ano por desnutrição, pobreza e doenças que se podem prever ou curar; crescimento constante das diferenças entre ricos e pobres, dentro dos países e entre os países. Destruição impiedosa e quase irreversível da natureza, dilapidação e esgotamento acelerado de importantes recursos não renováveis; poluição da atmosfera, dos lençóis freáticos, dos rios e dos mares; mudanças no clima de consequências que não podem ser prognosticadas e que já são visíveis. No último século, mais de 1 000 milhões de hectares de florestas virgens têm desaparecido, e uma superfície semelhante tem se transformado em desertos ou em terras degradadas.
Há 30 anos quase ninguém falava neste tema. Hoje é uma questão vital para a nossa espécie. Não quero mencionar mais cifras. Acho que estes dados servem para qualificar um sistema que pretende a excelência, outorgar-lhe 100 pontos, 90, 80, 50, 25 ou se calhar, menos de 25. É possível demonstrar tudo duma forma muito simples, seus resultados desastrosos podem ser conceituados como verdades evidentes.
Perante tudo isto, muitos se perguntam, o que fazer? Bom, os europeus têm inventado sua receita, estão a unir-se, falaram de uma moeda única, já foi aprovada e anda no processo de aplicação, com grandes simpatias por parte dos Estados Unidos, segundo os porta-vozes, tão grandes quanto hipócritas (Risos), visto que todos sabemos que o que eles querem é que se afunde o euro totalmente, enquanto afirmam: "Coisa magnífica, o euro está muito bem, é uma ideia excelente." Ora bom, essa é a Europa, rica, desenvolvida, com um produto bruto anual por habitante nalguns países à volta dos 20 000 dólares, noutros atinge 25 000 ou 30 000. Façam uma comparação com países do nosso mundo que têm 500, 600 ou 1 000.
O que fazemos? É uma pergunta que nos devemos fazer, dentro deste contexto, num momento em que nos querem engolir. Ninguém duvide de que nos querem engolir, e não devemos esperar que haja outro milagre como aquele em que tiraram um profeta do ventre de uma baleia (Risos), porque se a baleia que temos cá ao lado nos engolir, vai-nos digerir, realmente, completos, a toda velocidade.
Sim, este é o nosso hemisfério, e estamos a falar aqui, nada menos que na Venezuela, nada menos que na terra gloriosa onde nasceu Bolívar, onde Bolívar sonhou (Aplausos), onde concebeu a unidade dos nossos países e trabalhou por essa unidade, na altura em que um cavalo levava três meses em ir de Caracas até Lima, e não existiam telemóveis, nem aviões, nem rodovias, nem computadores, nada disso. Porém, conseguiu conceber, ver o perigo do que podiam significar aqueles, que eram umas poucas colónias que ficaram independentes no norte longínquo; conseguiu prever, foi profeta. "Os Estados Unidos parecem destinados pela providência para encher América de misérias em nome da liberdade", disse um dia; lançou a ideia da unidade dos nossos povos e lutou por ela até a sua morte. Se naquela altura podia ser um sonho, hoje é uma necessidade vital (Aplausos).
Como, do nosso ponto de vista, podem ir aparecendo as soluções? São difíceis, bem difíceis. Os europeus, como eu disse, traçaram suas pautas, e estão numa forte concorrência com o nosso vizinho do norte, isso é evidente, fortíssima e crescente concorrência. Os Estados Unidos não querem que ninguém interfira os seus interesses neste, que considera o seu hemisfério, querem tudo absolutamente para eles. A China, pela sua vez, lá no Oriente Longínquo, é uma imensa nação. O Japão, é um poderoso país industrial.
Por achar que a globalização é um processo irreversível, e que o problema não está na globalização, mas no tipo de globalização, é por isso que julgo que neste difícil e duro caminho, para o qual os povos não dispõem de muito tempo realmente, acho que terão que produzir-se uniões, acordos, integrações regionais, e os latino-americanos são os que mais devem se apressar na luta pela integração; mas não apenas da América Latina, senão da América Latina e do Caribe (Aplausos). Lá estão os nossos irmãos de expressão inglesa do Caribe, os países do CARICOM, pequenitos, apenas com alguns anos de independência, e têm-se comportado com uma dignidade impressionante.
Digo-o pela conduta que têm tido para com Cuba. Quando todo o mundo na América Latina, pelas pressões dos Estados Unidos, se desligou do nosso país, absolutamente todos salvo o México, foram os caribenhos, ao passar dos anos, os que abriram uma fenda, junto de Torrijos, e lutaram para romper o isolamento de Cuba, até esta altura em que Cuba tem relações com a imensa maioria esmagadora dos países latino-americanos e do Caribe (Aplausos). Conhecemo-los e lhes temos apreço. Não podem ficar no esquecimento, não podem ficar nas mãos da OMC e seus acordos, não podem ficar a mercê de empresas multinacionais norte-americanas da banana, tentando tirar-lhes as pequenas preferências de que tanto precisam. Este mundo não pode ser concertado fazendo tábuas rasas; esse é o método ianque, arrancar tudo de raiz.
Alguns desses países vivem das suas plantações, apenas produzem 1% da banana que é comercializada, no máximo 2 %. Não é nada, e o governo dos Estados Unidos, para proteger uma multinacional norte-americana que possui plantações na América Central, apresenteou um recurso na OMC, que ainda por cima ganhou. Agora, os caribenhos estão muito preocupados, porque lhes tiram as preferências por essas vias, e porque lhes tentam liquidar a Convenção de Lomé, em virtude da qual desfrutam de algumas considerações mínimas, como antigas colónias e países desesperadamente necessitados de recursos para o desenvolvimento, o que é injusto arrebatar-lhes.
Todos os países não podem ser tratados da mesma forma, visto que têm diferentes níveis de desenvolvimento. Não podem ser ignoradas as desigualdades. Não se pode aplicar uma receita para todos. Não se pode impor uma via única. E de nada valem as fórmulas para regulamentar e desenvolver as relações económicas internacionais se for para beneficiar exclusivamente os mais ricos e poderosos. Tanto o Fundo Monetário quanto a OMC querem fazer tábua rasa com tudo.
A OCDE, clube exclusivo dos ricos, estava a elaborar praticamente em secreto um acordo multilateral de investimentos com carácter supranacional, para estabelecer as leis relativas aos investimentos estrangeiros. Digamos, uma espécie de Helms-Burton a nível mundial. E caladinhos, já o tinham quase totalmente elaborado, até que uma organização não governamental apanhou uma cópia do projecto, publicou-a pela Internet, espalhou-se pelo mundo, aconteceu um escândalo na França, que rejeitou o projecto de acordo, rejeitaram aquele acordo —ao que parece não lhe prestaram muita atenção àquilo que estava a ser cozinhado na OCDE—, depois, acho que também os australianos fizeram mesma coisa, e o projecto elaborado com tanto segredo veio ao chão. Assim são projectados e elaborados importantes e decisivos tratados internacionais.
Depois, o colocam sobre uma mesa. Aquele que desejar subscrevê-lo, que o subscreva, e aquele que não, já sabe o que lhe acontece (Risos).
Não discutiram nem uma palavra com os países que tinham de aplicar tais normas inevitáveis. Dessa forma somos tratados. Assim são tratados os interesses mais vitais dos nossos povos.
Vão continuar. Teremos de estar com os olhos bem abertos e sempre alertas no que se refere a essas instituições. É bom frisar que estavam a nos fazer uma grande armadilha que por enquanto tem se impedido. Mas continuarão a inventar coisas que tornariam ainda mais difíceis as nossas condições de vida. Já não apenas se tratava de colocar-nos a concorrer a todos, e todo o mundo a fazer desesperadas concessões em todos os domínios. Com o Acordo Multilateral de Investimentos procuravam investir nas condições que bem lhes parecessem, respeitando, se quiserem, o meio ambiente ou envenenando todos os rios de qualquer país, destruindo a natureza, sem que ninguém lhes possa exigir alguma coisa. Contudo, na OMC os países do Terceiro Mundo somos maioria, e podemos lutar pelos nossos interesses, se conseguirmos evitar que nos enganem e nos dividam. Cuba não pôde ser excluída porque era membro da organização desde a sua fundação. Eles não querem que os chineses entrem, pelo menos lhes fazem uma resistência tremenda (Risos). Os chineses fazem grandes esforços por entrarem na OMC, visto que para um país que não pertença a essa instituição, podem aplicar uma taxa alfandegária de 1 000 por 100, e bloquear totalmente as suas exportações. Os países mais ricos estabelecem as regras e requerimentos que mais lhes convêm.
O que lhes convém? A que aspiram? A que um dia não hajam taxas alfandegárias, isto é acrescentado ao sonho de que seus investimentos não paguem impostos ao fisco nacional, ou desfrutem um montão de anos livres de impostos, mediante concessões leoninas arrancadas a um mundo subdesenvolvido, com sede de investimentos: livre direito de fazer o que quiserem nos nossos países com os seus investimentos sem restrição nenhuma. Livre circulação de capitais e mercadorias em todo o mundo, excluída, como é lógico, essa mercadoria que se chama homem do Terceiro Mundo, o escravo moderno, a mão de obra barata que tanto abunda no nosso planeta, que inunda as zonas francas em sua própria terra, ou varre ruas, recolhe produtos da horta, e realiza os trabalhos mais penosos e pior pagos quando é admitido legal ou ilegalmente em antigas metrópoles e sociedades de consumo.
Esse é o tipo de capitalismo global que nos querem impor. Os nossos países, cheios de zonas francas, não teriam outra receita do que o magro salário daqueles que tenham o privilégio de encontrar emprego, enquanto um montão de multimilionários acumulam fortunas e fortunas, que não se sabe sequer até onde vão chegar.
O facto de que um cidadão norte-americano, por talentoso e sábio que ele for em matérias técnicas e de negócios, possua uma fortuna de 64 000 milhões de dólares, equivalente à receita anual de mais de 150 milhões de pessoas que vivem nos países mais pobres, não deixa de ser uma coisa assombrosamente desigual e injusta. O facto de que esse capital tenha sido acumulado em poucos anos, visto que cada três ou quatro esteve a duplicar-se o valor das ações das grandes empresas norte-americanas, em virtude do jogo das operações bursáteis que incham o preço dos activos até ao infinito, demonstra uma realidade que não pode ser qualificada de racional, sustentável e suportável. Alguém paga tudo isto: o mundo, as cifras siderais de pobres e esfomeados, doentes, analfabetos e explorados que habitam nossa Terra.
Qual ano 2 000 vamos celebrar, e em quê classe de novo século vamos viver? Para além de que este 31 de Dezembro não acaba este século. As pessoas têm-se enganado porque elas querem, visto que realmente o último ano deste século é o ano 2 000 e não 1999 (Aplausos). Todavia, haverá festas, e então acho que alguns devem estar muito contentes de celebrar, de modo especial, o dia 31 de Dezembro de 1999, e o 31 de Dezembro do ano
2 000, e aqueles que vendem doces, bebidas, presentes de Natal, Papai Noel e todas essas coisas, farão negócios enormes com dois anos de fim de século em vez de um (Risos). A França venderá mais champanhe do que nunca antes.
Eu estou tranquilo. Este 31 de dezembro que nos conduziu a 1999, o passei a escrever um discurso, o que traz certas vantagens, porque a gente não sente a tentação de abordar argumentos e temas adicionais, e se rege estritamente por aquilo que se tem prometido a si próprio. Eu andava nisso às 12:00 da noite do dia 31 de Dezembro, mas estava contente, íamos fazer 40 anos de uma revolução que não conseguiram vencer (Aplausos prolongados). Estava realmente feliz, não é preciso que lhes diga outra coisa.
O mundo irá esperar o século XXI com alguns indivíduos a viver sob as pontes de Nova Iorque, embrulhados em papéis, enquanto outros amassam fortunas gigantescas. Há muitos megamilionários naquele país, porém, são incomparavelmente mais os que vivem debaixo das pontes, nos limiares das edificações ou em habitações precárias. Existe pobreza crítica para milhões de pessoas nos próprios Estados Unidos, que não podem deixar orgulhosos aos fanáticos defensores da ordem económica imposta à humanidade.
Há alguns dias tive uma conversa com uma delegação norte-americana que nos visitou em Cuba. Pessoas verdadeiramente informadas, amistosas e destacadas —nesse grupo haviam religiosos e também cientistas—, e me contaram que no Bronx estavam a promover a construção de um hospital pediátrico. Então, digo-lhes: "No Bronx não há nem um hospital pediátrico"? Dizem: "Não." "E quantas crianças há no Bronx?", pergunto-lhes. Respondem: "Quatrocentas mil crianças". De tal maneira que há 400 000 crianças, numa Cidade como Nova Iorque, muitas delas de origem porto-riquenha, hispanas em geral, e negras, que não têm um hospital pediátrico.
Mas me contaram algo mais: "Há 11 milhões de crianças norte-americanas que não têm assegurada a assistência médica. Reparem, trata-se em geral de crianças negras, mestiças, índias ou filhos de imigrantes de origem hispana. Não vão acreditar que naquela sociedade a discriminação é originada apenas pela cor da pele; não, não, não. Ora sejam morenos ou loiros, as damas ou os cavaleiros, muitas vezes são desprezados, simplesmente por serem latino-americanos (Aplausos).
Alguma vez passei naquele país, alguma vez me sentei nalguma cafetaria, ou estive nesses motéis situados à beira das estradas, e percebi em mais de uma ocasião o tratamento depreciativo. Quase se sentiam com raiva quando um latino lá chegava. Recebia a impressão de uma sociedade que albergava muito ódio.
Os 11 milhões de crianças sem serviços médicos garantidos, pertencem, em grande parte, a essas minorias que residem nos Estados Unidos. São os que possuem indicadores de mortalidade infantil mais elevados. Perguntei-lhes quanto era no Bronx, e me informaram que julgavam que andava a volta de 20 ou 21 no primeiro ano de vida; que existem outros lugares piores —no próprio Washington não sei quanto havia—, e nas áreas dos imigrantes hispanos morrem 30 ou trinta e tal. Isso não é justo.
Eles têm maior mortalidade infantil do que Cuba. O país bloqueado, ao qual lhe fazem a guerra, e ao qual lhe roubaram 3 000 médicos, hoje tem uma mortalidade infantil de apenas 7,1 por cada 1 000 nascidos vivos no primeiro ano de vida (Aplausos). São melhores os nossos indicadores, e o nível é muito semelhante em todo o país. Algumas províncias têm 6, e não é na capital precisamente. Outras podem ter 8, mas está dentro dessa faixa, dois ou três pontos de diferença com a média nacional, porque existe uma medicina realmente estendida a todos os sectores sociais e regiões.
Desde que começou o período especial, nestes oito anos terríveis, conseguimos, porém, reduzi-la de 10 para 7,1, que foi a cifra de 1998 (Aplausos). Uma redução de quase 30%, a pesar, devo dizer-lhes, que quando entramos nessa prova difícil, com o desabamento do campo socialista, e a URSS especialmente, com os quais tínhamos a maior parte do nosso comércio, enquanto, por outro lado, era incrementada a guerra económica dos Estados Unidos contra Cuba, em 1993, por exemplo, por mais esforços que fizemos, de quase 3 000 calorias diárias individuais que consumia nossa população, tinha-se reduzido para 1 863, e de 75 gramas de proteínas de origem vegetal ou animal diárias, reduziu-se para 46 gramas aproximadamente. Ah!, mas ficou garantido a toda custa, entre outras coisas essenciais, o litro de leite, e bem barato, subsidiado para todas as crianças até os 7 anos de idade (Aplausos).
Conseguimos apoiar os mais vulneráveis. Se houver uma seca forte, ou outra catástrofe natural, tentamos proteger a todos, mas especialmente às crianças e às pessoas idosas; arranjar alguns recursos onde for preciso.
Dentre os avanços que tem tido a nossa Revolução, em pleno período especial, está a criação de um conjunto de novos centros científicos de grande importância. O nosso país produz 90% dos medicamentos que consome, ainda que tem que importar determinadas matérias primas e trazê-las desde lugares distantes. Temos carências de medicamentos, não vou negar, mas se fez o máximo para que os mais essenciais não faltem nunca; uma reserva central, por se um dia falha algum ou se perde, e estamos tentando criar uma segunda. São medidas, porque é preciso prever, proteger àqueles que possam ter mais problemas. É claro, também é possível receber medicamentos enviados por familiares desde o exterior, damos todas as facilidades, não se cobra absolutamente nada, não há nenhuma taxa que deva ser paga por isso, mas não deixamos de fazer os maiores esforços para que o Estado possa garantir esses recursos a toda nossa população.
A pesar da referida redução nos alimentos, conseguimos rebaixar o indicador de mortalidade infantil, como lhes disse, um 30%. Conseguimos manter, e inclusive, elevar a perspectiva de vida. Por outro lado, não foi fechada nenhuma escola (Aplausos); não foi cancelada nenhuma vaga de mestre, antes pelo contrário, estão abertas as faculdades de pedagogia para todos os que desejem matricular (Aplausos).
Devo advertir, para que não se produza confusão alguma, que não a conseguimos fazer a mesma coisa em todas as carreiras. Em medicina tivemos que estabelecer certos limites, porém à procura de maior preparação ainda, maior qualidade naqueles que entram, visto que formamos muitos médicos na nossa batalha contra o vizinho, e lhes demos autorização, inclusive, para emigrar se o desejarem. Travando essa batalha, chegamos a criar 21 faculdades universitárias de medicina (Aplausos).
Mesmo agora lhes estamos a oferecer 1 000 bolsas de estudo a jovens centro-americanos para se formarem como médicos no nosso país (Aplausos), e 500 adicionais cada ano, durante dez anos. Estamos criando uma faculdade latino-americana de medicina (Aplausos e exclamações). Com as reduções que fizemos nas despesas, inclusive, na defesa, para além dos perigos que nos ameaçam, os prédios de uma excelente escola de formadores de comandantes de navio, militares e civís, que passa a outra instalação, serão destinados à nova que faculdade de medicina que estará pronta em Março, e os primeiros estudantes centro-americanos estarão chegando para um curso de seis meses de preparação pré-médica, com o objectivo de refrescar conhecimentos e evitar a apatía académica. No mês de Setembro estarão estudando seu primeiro ano de medicina, mais de 1 000 jovens da América Central (Aplausos). Não sei se é necessário acrescentar que isto é feito totalmente de forma gratuita (Aplausos).
Talvez, e não vão tomar isto como uma publicidade em favor de Cuba, senão que está ligado com as ideias que estou a colocar a respeito do que pode ser feito com muito pouco, deva dizer-lhes que oferecemos 2 000 médicos aos países centro-americanos afectados pelo furacão Mitch (Aplausos). E reafirmamos que o nosso pessoal médico está pronto, que se algum país desenvolvido, ou vários —e já houve determinadas respostas— forneciam os medicamentos, poderíamos salvar na América Central todos os anos, vejam só, todos os anos!, tantas vidas quanto foram perdidas por causa do furacão, no suposto de que o furacão tivesse custado não menos de
30 000 vidas, como foi dito, e que daquelas que seriam salvas, ao redor de 25 000 seriam crianças.
Fizemos os cálculos, e sabemos que os medicamentos para salvar uma criança muitas vezes custam centavos. Aquilo que vale alguma coisa que não pode ser paga a nenhum preço, é o médico formado com uma consciência que o leva a trabalhar nas montanhas (Aplausos), nos lugares mais afastados, nas zonas de pântano, cheias de todo tipo de insectos, víboras, mosquitos e algumas doenças que não existem no nosso país; e nenhum deles hesita. A maioria esmagadora dos médicos ofereceram-se de forma voluntária para essa tarefa. Já estão prontos, e neste momento há por volta de 400 a trabalhar na América Central e em Haiti, a quem lhe fizemos o mesmo oferecimento depois do furacão Georges. Ali já temos ao redor de 250 médicos.
A percentagem de vidas que podem ser salvas em Haiti é maior, visto que a mortalidade infantil nos primeiros anos de vida é de 130 ou 132; quer dizer, que ficando reduzida a 35 —e no nosso país se sabe de cor como o fazer— estariam sendo salvas aproximadamente 100 crianças por cada 1 000 nascidos vivos cada ano. É por isso que o potencial é maior. A sua população é de 7 milhões e meio de habitantes, um número muito elevado de nascimentos, e portanto, ali um médico salva mais vidas. Na América Central, a média nos países afectados pelo furacão está entre 50 e 60, é quase a metade do potencial de vidas salváveis.
Advirto-lhes que fizemos estes cálculos conservadoramente. Existe uma reserva por cima das cifras mencionadas, e uma coloção: não queremos os nossos médicos nas cidades, não os queremos sobre o asfalto, porque não desejamos que nenhum médico, em nenhum desses países se sinta afectado de alguma forma pela presença dos médicos cubanos, porque eles vão prestar seus serviços naqueles lugares onde não há nenhum médico, e onde não queira ir nenhum outro. Tudo o contrário, falamos para que existam as melhores relações com os médicos nacionais, a cooperação com eles, ora seja um médico privado ou não, se têm que atender um caso que for do interesse do médico nacional, que contem com ele.
Temos dito que é indispensável a colaboração com os médicos, e também a colaboração com todos os sectores. Ali os nossos médicos não vão predicar ideias políticas, vão cumprir uma missão humana; essa é a tarefa deles. Também a cooperação com sacerdotes e pastores, visto que tem muitos deles a desempenhar sua missão em lugares afastados; alguns dos nossos primeiros médicos foram parar às instalações de alguma paróquia.
Assim, na verdade, estão a trabalhar coordenadamente. Isso nos dá um imenso prazer. Estão em lugares intrincados, onde há indígenas que falam sua língua com um grande sentido da dignidade; e camponeses que vivem em aldeias, onde é mais fácil o trabalho do que na própria Cuba, porque no nosso país vivem isolados, nas montanhas, e o médico deve visitá-los periodicamente; por norma, tem que caminhar muito. Uma aldeia, no entanto, pode ser percorrida três vezes num mesmo dia.
Ali está a levar-se a cabo um programa que é uma prova muito eloquente de quanto pode ser feito com um mínimo de recursos materiais, e o mais importante —isso não o sabem aqueles cavalheiros, os senhores que dirigem as instituições financeiras de que falei— é que existe um capital que vale muito mais que todos os milhões deles, o capital humano (Aplausos).
Um dia desses vou me encontrar com alguns desses auxiliares de Bill Gates, que é o campeão da computação, e lhes farei uma pergunta: Você conseguiria averiguar quantos norte-americanos prestaram serviços no exterior desde que foram criados os Corpos de Paz?, isto para saber se por acaso são mais do que o número de cubanos que o têm feito, como fruto do espírito generoso e solidário dessa ilha e esse povo tão caluniado, tão ignorado, ao qual lhe fazem a guerra que não lhe fizeram aos fascistas do apartheid —refiro-me à guerra económica. Conheço norte-americanos que são pessoas decentes, altruístas, os conheço, e constitui um mérito muito grande que ali, onde o sistema não planta outra coisa senão o egoísmo e o veneno do individualismo, haja muita gente altruísta, por uma razão ou outra. A esses norte-americanos, os respeito. Conheci alguns dos que estiveram nesses Corpos de Paz, mas tenho a certeza de que eles não poderiam mobilizar, desde que foram criados, os que pôde mobilizar Cuba.
Numa ocasião, quando na Nicarágua nos solicitaram 1 000 mestres —depois foram um bocado mais—, pedimos voluntários e se ofereceram 30 000. E quando os bandos da guerra suja contra os sandinistas, organizados e abastecidos pelos Estados Unidos, assassinaram alguns mestres nossos —que não estavam nas cidades, mas nos lugares mais afastados dos campos e a viver nas condições em que viviam os camponeses—, então se ofereceram 100 000 (Aplausos). Isso é o que quero dizer! E acrescento, que a maioria dos que foram eram mulheres, porque é maioritário o número de mulheres nessa profissão (Aplausos).
Por isso falo em ideias, por isso falo em consciências, por isso acredito no que digo, por isso acredito no homem, porque quando foram capazes de ir ou estiveram dispostos a ir a esses lugares tão massivamente tantos compatriotas nossos, ficou demonstrado que a consciência e a ideia da solidariedade e do internacionalismo podem chegar a ser massivas (Aplausos).
Vou completar a ideia. Já lhes disse que nos levaram a metade dos médicos, e mais da metade dos professores da única faculdade de medicina que tinha Cuba. Aceitamos o desafio, não há nada quanto o desafio; e hoje Cuba tem 64 000 médicos, 1 médico cada 176 habitantes (Aplausos), o dobro dos médicos por habitante do mais industrializado de todos os países do Primeiro Mundo. E o que não lhes disse é que desde que começou o período especial até hoje, temos incorporado 25 000 novos médicos nas instituições de saúde, e fundamentalmente nas comunidades de todo o país, nas cidades, nos campos, planícies e montanhas. Isso se chama capital humano!
O homem é muito mais fácil conquistá-lo do que comprá-lo (Aplausos); é muito mais fácil conquistá-lo, afortunadamente, porque a Administração dos Estados Unidos, com a sua chamada flexibilização do bloqueio, que constitui um verdadeiro engano para o mundo, o que tem colocado praticamente é que cada norte-americano compre um cubano (Risos). Digo: Bom, vamos aumentar no preço (Risos), visto que tem 27 norte-americanos para cada cubano. A este governo, depois de ter feito contra o nosso país tudo o que fez, tornando mais dura sua guerra económica sob a pressão da extrema direita, veio-lhes à cabeça a última ideia: ver como nos compram um por um (Risos); mas já não ao ministro ou a outro dirigente administrativo ou político, mas ao cidadão comum, dando-lhe licença a qualquer norte-americano —é claro, sempre aprovado previamente por eles—, para enviar alguma remessa de dinheiro a um cubano, embora não tenha nenhum parentesco com ele.
Digo: Muito bem, agora sabemos que valemos pelo menos alguma coisa (Risos), porque tem pessoas que querem pagar algo por nós; um governo riquíssimo que lança a palavra de ordem de comprar-nos. Há 4 000 milhões de pobres no mundo, e não pagam nem um tostão por eles (Risos e aplausos). Elevaram a nossa cotização no mercado.
Conto-lhes isto porque estamos a estender o nosso programa de assistência médica a Suriname, que já solicitou mais de 60 médicos. Até numa região do Canadá, numa província autónoma as suas autoridades nos solicitaram médicos. Dizem os canadenses: Acontece que não os encontramos aqui para prestarem serviços no círculo polar ártico, não querem vir. Dissemos-lhes imediatamente: Sim. Discutam com o vosso governo porque isso é assunto dele. Obviamente, já aí teriam de ir noutras condições, não por negócio, mas por uma lógica elementar, tratando-se de um país industrializado. Os serviços deles seriam razoáveis embora modestamente remunerados, visto que não é o interesse económico o que move a nossa conduta, senão um sincero desejo de cooperação internacional no domínio da saúde, onde dispomos dos recursos humanos suficientes.
Se o dirigente canadiano conseguir vencer os obstáculos para que vão os médicos, vamos ter médicos cubanos desde a selva do Amazonas até o círculo polar ártico (Aplausos). Mas, o nosso esforço está concentrado no Terceiro Mundo. Pagamos-lhes aos nossos médicos o modesto salário que recebem no nosso país. É bom, alegramo-nos, os médicos estão muito contentes com essa tarefa. Possuem uma moral elevada e uma grande tradição internacionalista.
Outros lugares também nos solicitaram cooperação. Desta forma a ideia que surgiu para ajudar Haiti e continuou para América Central, agora percebemos que se vai estendendo pela América Latina e o Caribe. Não temos dinheiro, mas temos capital humano (Aplausos).
Não o tomem como uma vaidade, mas teriam que reunir todos os médicos dos Estados Unidos, sei lá quantos são, para ver se conseguem
2 000 voluntários dispostos a marchar para os pântanos, montanhas e lugares inóspitos onde vão os nossos médicos. Valeria a pena uma provinha para constatá-lo, embora sei que existem médicos altruístas também ali, não vou negá-lo. Mas reunir 2 000, sair daquele nível de vida da sociedade de consumo, e ir a parar num pântano da Mosquitia, que nem os conquistadores espanhóis suportavam, que já é demais (Risos e aplausos), talvez não possam conseguí-lo. Contudo, lá estão os médicos cubanos: capital humano.
Se por cada três médicos, tiramos um, o programa que lhe oferecemos a Haiti e à América Central, poderíamos oferecê-lo ao resto da América Latina, onde existirem condições parecidas, a todos os lugares onde morram crianças e morram pessoas adultas porque não têm assistência médica, e onde não vá ninguém. Já expressamos isso, vai por esse caminho, pelo que vejo, mas o nosso país pode dar resposta. Vejam que capital humano pode ser acumulado!
Quantas vidas podem salvar-se? Nós afirmamos e temos proposto publicamente a idéia de concertar-nos, os países da nossa região para salvar um milhão de vidas todos os anos, dentre elas, as de centenas de milhares de crianças. Até pode ser calculado com precisão quanto custa salvar o milhão de vidas, e as das crianças são as que menos custam, visto que quando temos alguns anos precisamos mais de radiografias, análises nos laboratórios, comprar mais medicamentos, e tudo isso. As crianças sobrevivem quase sem ajuda quando têm ultrapassado os primeiros anos; às vezes uma vacina que vale centavos salva uma vida. A própria vacina da poliomielite é uma prova disso.
Temos dito que um milhão de vidas podem salvar-se cada ano com um pouco de dinheiro, desse que é dilapidado em despesas sumptuárias aos montes, e dissemos também que os médicos estão disponíveis. Podem sobrar todos os medicamentos da Europa e não salvam o milhão de vidas se não existirem os 15 000 ou 20 000 médicos que seriam necessários para levar a cabo um programa como esse. Falo-lhes disto, é preciso interiorizar, para que conheçam o que Cuba é hoje, por que Cuba é assim, e quais as normas que prevalecem em Cuba, tão miseravelmente caluniada no que diz respeito aos direitos humanos. O país onde em 40 anos de Revolução não houve jamais um desaparecido, onde jamais houve um torturado (Aplausos), onde não existem esquadrões da morte, nem houve um só assassinato político, ou coisas parecidas. Também não há anciãos desamparados, nem crianças abandonadas pelas ruas, ou sem salas de aula nem mestres, nem pessoa alguma esquecida nem abandonada à sua sorte.
Bem sabemos o que tem acontecido nalguns lugares onde chegaram os nossos vizinhos do Norte, como os que organizaram na América Central o derrubamento do governo de um dos países mais importantes da região no ano 1954. Lá ficaram instalados seus assessores com seus manuais de torturas, de repressão e de morte. Durante muitos anos a categoria de presos não existia, não era conhecida, apenas mortos e desaparecidos. Cem mil desaparecidos num só país!, mais de 50 000 mortos adicionais. Poderíamos acrescentar o acontecido em outros numerosos países com as torturas, os assassinatos, os desaparecidos, as reiteradas intervenções militares norte-americanas com qualquer pretexto, ou sem pretexto algum. Eles nem se lembram disso, não falam nisso, perderam a memória. Nós, perante a experiência terrível vivida pelos povos da nossa América lhes lançamos o desafio. Vamos demonstrar com factos, com realidades quem têm um sentido humano da vida, quem têm verdadeiros sentimentos humanitários, e quem são capazes de fazer alguma coisa pelo homem, e não com mentiras, palavras de ordem, desinformação, hipocrisia, engano e tudo o que têm estado a fazer na nossa região ao longo deste século (Aplausos).
Sei que vocês não precisam que eu lhes esclareça isto, mas como fiz referência ao tema, sinto-me com o dever de o dizer, porque quantas vezes se encontraram com pessoas desinformadas, acreditando nem que seja uma parte das toneladas de mentiras e de calúnias que lançaram contra o nosso país, para nos golpear, para nos enfraquecer, para nos isolar, para nos dividir. Não o conseguiram nem o conseguirão! (Aplausos.)
Disse-lhe estas coisas, mas com a maior intimidade. Não podia vir falar como em 1959, de organizar uma expedição para resolver os problemas num país vizinho (Risos); sabemos muito bem que hoje nenhum país sozinho pode, por si próprio, resolver os seus problemas, é a realidade neste mundo globalizado. Aqui se pode dizer: Salvamo-nos todos ou nos afundamos todos (Aplausos).
Martí disse: "Pátria é humanidade", uma das mais extraordinárias frases que proferiu. Nós temos que pensar assim, pátria é humanidade!
Lembro na história de Cuba, o caso de um oficial espanhol que durante a Guerra dos Dez Anos, a primeira contenda pela independência de Cuba, quando o governo espanhol fuzilou oito estudantes de medicina que eram inocentes, acusando-os de terem profanado o sepulcro de um extremista de direita. Em gesto imperecedoiro de indignação e protesto quebrou a sua espada e exclamou: "Antes que a pátria está a humanidade" (Aplausos). É claro, que há partes dessa humanidade que estão mais próximas e outras mais longínquas. Quando falamos de humanidade pensamos, em primeiro lugar, nos nossos irmãos latino-americanos e caribenhos, os que não esquecemos nunca (Aplausos), e depois, no que se refere ao resto dessa humanidade que habita o nosso planeta, teremos que aprender esse conceito, esses princípios —não só aprendê-los, mas sentí-los e praticá-los— contidos na frase de Martí.
Em primeiro lugar, temos o dever de nos juntar aos povos latino-americanos sem perder um minuto; os africanos tentam conseguí-lo; os do sudeste asiático têm a ASEAN e buscam formas de integração económica, e Europa o faz aceleradamente. Isto é, nas várias regiões do mundo haverá uniões sub-regionais e regionais.
Bolívar sonhava com uma união regional ampla, desde o México até a Argentina. Como vocês sabem, o Congresso anfictiónico foi sabotado pelos cavaleiros do Norte, que além disso se opuseram à idéia bolivariana de enviar uma expedição sob o comando de Sucre para libertar à ilha de Cuba, questão indispensável para eliminar todo risco de ameaça e contra-ataque da temível e tenaz metrópole espanhola, portanto não fomos esquecidos na história da Venezuela (Aplausos). Hoje, que conseguimos libertá-la do domínio de uma potência muito mais poderosa, nosso dever mais sagrado é defendê-la, em prol dos interesses e da própria segurança dos nossos irmãos deste hemisfério.
É claro que há que trabalhar em várias formas de cooperação e de integração possível, passo a passo, mas passos rápidos se quisermos sobreviver como identidade regional que possui a mesma cultura, idioma, tantas coisas em comum, como não o possui a Europa; porque não sei como se entenderá um italiano com um austríaco (Risos) ou com um finlandês, um alemão com um belga ou um português. Contudo, já criaram a União Europeia e avançam rapidamente para uma maior integração económica e a total união monetária. Por que considerar-nos incapazes de, pelo menos, ir pensando em fórmulas desse tipo? Por que não alentar todas as tendências unitárias e integracionistas em todos os países do nosso idioma, da nossa cultura, das nossas crenças, do nosso sangue mestiço, que corre pelas veias da imensa maioria? E quando não existe a mestiçagem no sangue, tem que existir a mestiçagem na alma (Aplausos).
Quem eram aqueles que lutaram na batalha de Ayacucho? Os da planície e caraquenhos, venezuelanos de oriente e de ocidente, colombianos, peruanos e equatorianos; juntos foram capazes de fazer o que fizeram. Não faltou a inesquecível cooperação de argentinos e chilenos. O nosso maior pecado é ter perdido, depois, quase 200 anos.
Daqui a 11 anos será comemorado o 200 aniversário da proclamação da independência da Venezuela e depois, sucessivamente as do resto dos países. Quase 200 anos! O que é que fizemos nesses 200 anos, divididos, fragmentados, balcanizados, submetidos? É mais fácil dominar os sete anãozinhos do que dominar um pugilista, por exemplo, embora seja de um peso ligeiro (Risos). Eles quiseram nos conservar como vizinhos anões e divididos para nos manter dominados.
Falava da necessidade da unidade não só na América do Sul mas também na América Central e no Caribe, e é um momento especial para o afirmar, à luz do que está a acontecer na Venezuela. Tentaram nos dividir. A grande potência do Norte o que quer é ALCA e nada mais; Acordo de Livre Comércio e fast-track —fast-track quer dizer rápido, segundo o que sei, não é? Passo rápido. Pois, também estou a recomendar um fast-track para nós, passo rápido para nos juntar (Aplausos). A resposta latino-americana ao fast-track do Norte deve ser o fast-track do Centro e do Sul (Aplausos).
Temos que apoiar o Brasil, alentá-lo. É que nós sabemos muito bem que aos Estados Unidos da América não lhes agrada nada que exista nem sequer um MERCOSUL; esta união constitui um embrião importante de unidade mais ampla, e pode crescer. Há outros países vizinhos que não estão muito longe de se aproximar do MERCOSUL. Nós o concebemos como uma união sub-regional, como um passo para uma união regional, primeiro da América do Sul, e depois outro passo, o mais rápido possível, para que abranja também o Caribe e a América Central.
Pensamos na necessidade de avançar nos contactos, a concepção, a concertação e todos os passos práticos que possam ser dados nessa direcção, antes de nos permitir o luxo de ter em consideração a criação de uma moeda comum. Ao nosso ver, neste terreno, de imediato, o mais que podemos fazer é elaborar ideias e conceitos. No entanto, devemos fazer tudo por evitar o suicídio político e económico de substituir nossas moedas nacionais pela moeda norte-americana, independentemente das dificuldades e flutuações que nos tenha imposto a ordem económica atual. Isso significaria, simplesmente, a anexão de América Latina aos Estados Unidos da América. Deixaríamos de ser considerados como nações independentes e renunciaríamos a qualquer possibilidade de participar na formação do mundo do futuro. Juntar-nos, reunir e alargar forças é iniludível nas circunstâncias actuais.
Agora realizar-se-á a reunião dos Estados da bacia do Caribe, no mês de Abril, na República Dominicana; depois quase imediatamente, a reunião em Rio de Janeiro com a União Europeia. Temos determinados interesses comuns com os europeus, coisas nossas que lhes interessam a eles, e coisas deles que nos interessam. Viver escravizados por uma moeda só, como estamos agora, é uma tragédia, e ficamos muito contentes de que com o euro apareça um rival para o campeão olímpico, para aquele que tem a medalha de ouro (Risos).
Outra necessidade inadiável é fortalecer as Nações Unidas. Há que democratizar as Nações Unidas, outorgar-lhe à Assembleia Geral, onde estão representados absolutamente todos os países que a integram, a máxima autoridade, as funções e o papel que lhe corresponde. Há que pôr fim à ditadura do Conselho de Segurança e à ditadura dentro do Conselho de Segurança que nele exercem os Estados Unidos da América (Aplausos). Se não se pode suprimir o veto, porque os que têm a última palavra para uma reforma desse tipo são precisamente os que ostentam o direito a vetá-la, exijamos fortemente que pelo menos o privilégio seja compartilhado, e que em vez de cinco seja aumentado o número de membros permanentes, em correspondência com a forma em que foi elevada a quantidade actual de membros e as grandes mudanças que têm acontecido em 50 anos, de tal maneira que o Terceiro Mundo, onde o grande número de países surgiram como Estados independentes depois da Segunda Guerra mundial, possa participar com igualdade de prerrogativas, neste importante órgão de Nações Unidas. Defendemos a ideia de exigir dois membros permanentes para América Latina e a bacia do Caribe, dois para África e dois para a área subdesenvolvida de Ásia, como mínimo. Se dois não forem suficientes, poderia aumentar até três, em uma ou em mais regiões das referidas. Somos a imensa maioria na Assembleia Geral das Nações Unidas. Não podemos permitir que nos continuem a ignorar.
Não nos oporíamos a que entrassem outros países industrializados; mas lhe damos prioridade absoluta à presença, no Conselho de Segurança, de representantes permanentes de América Latina e o Caribe, e as outras regiões referidas, com as mesmas prerrogativas que tiverem todos os outros membros permanentes desse Conselho (Aplausos). Caso contrário vamos ter três categorias de membros: permanentes com direito ao veto, permanentes sem direito ao veto e outros não permanentes. A isto acrescentou-se uma loucura, ou melhor um invento dos Estados Unidos da América para dividir e com isso preservar os privilégios do seu status actual, ao mesmo tempo que diminui as prerrogativas dos possíveis novos membros permanentes: a ideia de fazer uma rotação entre dois ou mais países por região, isto é, reduzir a zero, à nada, a simplesmente sal e água, a reforma vital.
Regulamente-se de uma outra forma, se calhar, a irritante prerrogativa do veto, exija-se um maior número de membros para poder aplicá-lo; ofereça-se-lhe à Assembleia Geral a possibilidade de participar nas decisões fundamentais. Isso não seria o mais democrático e justo?
Aí temos que lutar. Faz falta a união de todos os países do Terceiro Mundo, isso é o que lhes dizemos aos africanos quando nos reunimos com eles, aos asiáticos, aos caribenhos, a todos, em todos os organismos internacionais: nas Nações Unidas, nas reuniões no Movimento de Países Não Alinhados, nas reuniões de Lomé, no Grupo dos 77, em todas as partes. Somos um monte de países com interesses comuns, desejosos de progresso e desenvolvimento; somos a imensa maioria em quase todas as instituições internacionais, e tenham a certeza de que se avança na tomada de consciência sobre o destino que nos estão a reservar. Há que trabalhar, persuadir, lutar e insistir. Jamais se desalentar.
Os do Norte sempre estão com as intrigas constantemente para nos dividir. Vou citar quatro exemplos relacionados com América Latina.
Eles não gostam do MERCOSUL, que tem estado conseguindo sucessos económicos, embora não seja mais do que um embrião da grande integração regional a qual aspiramos, e que não desejam de maneira nenhuma. O que inventam? Bom, muitas coisas: primeiro inventam essas reuniões hemisféricas onde Cuba está excluída, uma espécie de resposta à primeira Cimeira Ibero-americana de Guadalajara.
Inventam a ideia de que só exista um possível membro permanente no Conselho de Segurança para América Latina, com o objectivo de encarar vários membros importantes da nossa região. Logo, acrescentam a conveniência de rotação do lugar entre o Brasil, Argentina e México sem direito ao veto logicamente.
Inventam logo a categoria especial de aliado estratégico para Argentina que desperta suspicácias e inquietações entre importantes vizinhos irmãos, chamados a se juntarem e cooperarem estreitamente, mesmo na altura em que o MERCOSUL avança.
Inventam a maquiavélica decisão de liberar a venda de armas sofisticadas aos países da região que podem desatar uma custosa corrida aos armamentos entre eles, que leve à ruína e a divisão. Para quê essas armas se já não existe a guerra fria, nem o fantasma da URSS, nem uma outra ameaça exterior que não seja dos próprios Estados Unidos da América? Por ventura essas armas podem contribuir à unidade, à cooperação, à integração, ao progresso e à paz entre nós? O que é que nós precisamos para abrir os olhos e acabar de compreender quais são os fins geográficos e estratégicos dessa política?
Ao nosso país pequeno não o puderam continuar a excluir de todas as partes. Já participamos nas Cimeiras Ibero-americanas; somos membros da associação de Estados do Caribe; pertencemos ao SELA; fomos incluídos na ALADI; temos excelentes relações com CARICOM; estaremos presentes na grande Cimeira União Europeia - América Latina e o Caribe, que terá lugar no Rio de Janeiro; fomos admitidos como observadores entre os países da Convenção de Lomé; somos membros activos do Grupo dos 77 e temos um lugar destacado como membro que participou desde a sua fundação no Movimento dos Países Não Alinhados; pertencemos à OMC e estamos muito presentes nas Nações Unidas, que é uma grande tribuna e uma instituição que, democratizada, poderia ser um pilar fundamental para uma globalização justa e humana.
Estamos lá fazendo o quê?, Falando, explicando, colocando problemas que sabemos que afectam muito a grande maioria da humanidade, e com a liberdade de poder fazê-lo, porque há países irmãos na África, na Ásia, na América Latina e noutros lugares que gostariam colocar com toda energia muitas coisas, mas não têm as mesmas possibilidades de Cuba, já excluída de todas as instituições financeiras internacionais, bloqueada e submetida a uma guerra económica, invulnerável a qualquer represália desse carácter, fortalecida por uma dura luta de 40 anos, que nos da absoluta liberdade para o fazer. Eles podem estar vitalmente necessitados de um crédito do Banco Mundial, ou do Banco Inter-americano, ou outro banco regional, ou de uma negociação com o Fundo Monetário, ou um crédito para as exportações que é um dos tantos mecanismos empregues pelos Estado Unidos da América, que limita as suas possibilidades de ação. Tem sido uma tarefa muitas vezes assumida por Cuba.
Apesar de tudo, há pessoas tão valentes no nosso mundo pobre, que por exemplo, nas Nações Unidas a proposição cubana contra o bloqueio recebeu este ano o apoio de 157 votos contra 2 (Aplausos). Há sete anos que estamos nesse exercício. A primeira vez foram por volta de 55 votos em favor, quatro ou cinco em contra; o resto, abstenções ou ausências. Quem queria ter problemas com os ianques?, porque lá é preciso votar de mão alçada (Risos).
Mas o medo se perde, e foi-se perdendo; a dignidade pode crescer, e cresce. No ano seguinte já eram sessenta e tal, depois setenta e tal, depois passou a cem, e agora, depois do apoio de quase 160 países frente a 2, não pode crescer mais, porque no fim não ficará nenhum a apoiar a desumana, cruel e interminável medida, salvo os Estados Unidos da América, a não ser que um dia eles votem a nosso favor, e apoiem a moção cubana (Risos e aplausos).
Avança-se, ganha-se terreno. Os povos conhecem que muitas vezes se fazem imputações caluniosas, por intuição ou instinto, os povos têm grande instinto! Além disso, conhecem-nos, porque estão por todas as partes a fazer de tudo, a tratar mal as pessoas e semeando egoísmos e ódios. Conhecem-nos. É difícil dissimular o desprezo, e é muito o que os países do Terceiro Mundo sofrem perante a arrogância e o desprezo.
Os governos dos Estados Unidos da América nos deram uma possibilidade de lutar a plenitude ao bloquear-nos, fustigar-nos constantemente e excluir-nos de tudo, felizes inclusive de estarmos excluídos em troca da liberdade de poder falar sem compromissos em qualquer tribuna do mundo, onde há tantas causas justas que defender (Aplausos).
Poderemos ter considerações em geral, pelas razões antes referidas, com outros países; mas a eles que constituem o pilar fundamental da reacção e a injustiça na nossa época, podemos lhes dizer a verdade e sempre a verdade, com relações e sem relações, com bloqueio e sem bloqueio. Que não pensem nem por sombras que se um dia eliminarem o bloqueio, Cuba irá deixar de falar com a mesma franqueza e a mesma honestidade com que tem falado durante estes quarenta anos! (Aplausos e exclamações.) É um dever histórico.
Dentro em breve acabo, se vocês mo permitirem (Exclamações de: "Não!). Lembrem que estou cá de visita (Risos), e estou cá perante vocês, perante os estudantes universitários; estou neste país que admiro e quero muito sinceramente (Aplausos e exclamações).
Não são palavras de um adulador. Sempre gostei da história. O primeiro que estudei foi precisamente história, porque quando estava na primeira classe logo me entregaram um livro de história sagrada —aí aprendi algumas quantas coisas que ainda me lembro (Risos)—, e, logicamente, a história da arca, o êxodo, as batalhas e a travessia pelo Mar Vermelho. Às vezes falo com alguns rabinos amigos e digo-lhes: "Digam-me por onde é que deram a volta?" (Risos), de brincadeira. Realmente respeito as religiões, porque tenho considerado um dever elementar o respeito pelas crenças de cada um. Às vezes discuto até questões relativamente teológicas sobre o mundo, o universo. Por ocasião da visita do Papa, tive a satisfação e a oportunidade de conhecer a alguns teólogos, realmente muito inteligentes, aos que lhe fiz perguntas de todo tipo (Risos e aplausos).
Não ia atrever-me a fazer perguntas a nenhum deles sobre dogmas ou questões de fé, mas sim de outro tipo: do espaço, do universo, das teorias sobre o sua origem, das possibilidades de que exista ou não vida noutros planetas e coisas que podem ser conversadas com muita seriedade. Com seriedade e respeito se pode conversar de qualquer tema, e a partir desse respeito perguntamos e inclusive às vezes brincamos.
Ora bom, estava aqui, e lhes ia dizer que alguma coisa devo falar sobre a Venezuela, não é?, se vocês mo permitirem (Aplausos e exclamações de: "Sim!". Vão dizer: "Veio a Venezuela e não disse nada de nós." Advirto-lhes a todos que isto não é fácil, pelas razões que já lhes expliquei.
Começava-lhes a dizer que era um país ao qual queria muito, por aí saiu a história do meu amor pela história, pela História Universal, a História das revoluções e as guerras a História de Cuba, a História de América Latina e a da Venezuela em especial. Por isso identifiquei-me muito com a vida e as ideias de Bolívar.
A fortuna quis que a Venezuela fosse o país que mais lutou pela independência deste hemisfério (Aplausos). Começou por aqui, e contaram com um legendário precursor como Miranda, que chegou a dirigir até um exército francês em campanha, travando batalhas famosas que em determinado momento lhe evitaram à Revolução Francesa uma invasão do seu território. Anteriormente esteve nos Estados Unidos da América a combater pela independência daquele país. Tenho uma grande colecção de livros sobre a fabulosa vida de Miranda, embora não tenha podido lê-los todos. Portanto, os venezuelanos tiveram a Miranda, o precursor da independência da América Latina e depois a Bolívar, o libertador, que para mim. sempre foi o maior entre os grandes homens da história (Do público dizem: "Também Fidel!").
Por favor, coloquem-me no lugar quarenta mil. Eu sempre lembro uma frase de Martí, que foi a que ficou mais gravada na minha consciência: "Toda a glória do mundo cabe num grão de milho." Muitos dos grandes homens da história se preocuparam pela glória, e não é razão para os criticar. O conceito do tempo, o sentido da história, do futuro, da importância e sobrevivência dos factos da sua vida que possa ter o homem, e talvez seja isso o que entendiam por glória, é natural e explicável. Bolívar gostava de falar de glória e falava muito fortemente da glória, e não pode ser criticado porque uma grande auréola acompanhará sempre o seu nome.
O conceito martiano de glória, que compartilho totalmente, é aquele que possa ser associado a uma vaidade pessoal e à auto-exaltação de si próprio. O papel do indivíduo em importantes acontecimentos históricos tem sido muito debatido e admitido inclusivamente. O que me agrada especialmente da frase de Martí é a insignificância do homem propriamente dito, perante a enorme transcendência e importância da humanidade e a magnitude inabrangível do universo, a realidade de que somos como um minúsculo fragmento de pó, que flutúa no espaço. Mas essa realidade não diminui nem um triz a grandeza do homem, pelo contrário, a aumenta quando, como no caso de Bolívar, levava na sua mente todo um universo cheio de ideias justas e sentimentos nobres. Por isso admiro tanto Bolívar. Por isso considero tão grande a sua obra. Não pertence à estirpe dos conquistadores de territórios e nações, nem à de fundadores de impérios que deu fama a outros; ele criou nações, libertou territórios e desfez impérios. Para além disso, foi excelente soldado, insigne pensador e profeta. Hoje tentamos fazer o que ele quis fazer e ainda não se tem feito; juntar os nossos povos para que amanhã, continuando o mesmo fio daquele pensamento unitário, o único que se corresponde com a nossa espécie e a nossa época, os seres humanos possam conhecer e viver num mundo unido, irmanado, justo e livre, o que ele quis fazer com os povos formados pelos brancos, negros, indígenas e mestiços da nossa América.
Aqui estamos nesta terra pela qual sentimos especial admiração, respeito e carinho. Há 40 anos, aquando da minha visita, o disse assim com profunda gratidão, porque em nenhum lugar me receberam melhor, com tanto afecto e entusiasmo. O único que me pode envergonhar é que eu estava realmente no pré-primário, quando o primeiro encontro nesta prestigiosa universidade (Risos e aplausos).
Depois de ter dito isto, vou expor o mais sucintamente possível a reflexão que desejava fazer, no que diz respeito a Venezuela.
Certamente nem todos estarão de acordo com ela. O fundamental é que cada um a analise com honestidade, serenidade e objectividade.
Cifras e dados que este visitante tentou analisar, levam-no à conclusão de que o povo da Venezuela terá que encarar valente e inteligentemente, neste novo amanhecer, sérias dificuldades que surgem da actual situação económica.
Exportações de mercadorias, segundo o relatório do Banco Central:
Em 1997: 23 400 milhões de dólares (aqui não são incluídos os serviços, que mais ou menos são equiparados em despesas e receitas).
Em 1998: 17 320 milhões. Isto é, o valor das exportações apenas num ano diminuiu a 6 080 milhões de dólares.
Petróleo (produto principal de exportação) - Preços: 1996: por volta de 20 dólares/barril; 1997: 16,50 dólares; 1998; 9 dólares aproximadamente.
Os minerais fundamentais; ferro, alumínio, ouro e produtos derivados como o aço, todos em maior ou menor grau diminuíram sensivelmente o preço. Ambos os produtos constituem 77% das exportações. Isto é, petróleo e minerais.
Balança comercial favorável:
1996 - 13 600 milhões de dólares
1998 - 3 400 milhões.
Diferença: 10 200 milhões em apenas 2 anos.
Balança de pagamento:
1996 - 7 000 milhões favorável para a Venezuela
1998 - 3 418 milhões desfavorável para o país.
Diferença: mais de 10 000 milhões.
Reservas internacionais disponíveis:
1997 - 17 818 milhões
1998 - 14 385 milhões de dólares.
Perdas líquidas: 3 500 milhões aproximadamente num ano.
Dívida externa:
Em 1998: 31 600 milhões, que não incluem a dívida financeira privada a curto prazo. Quase 40% do orçamento do país se gasta no serviço da dívida externa.
Situação social segundo várias fontes nacionais e internacionais ratificadas ontem textualmente pelo Presidente Chávez (Aplausos):
Desemprego —disse ele—: Cifras oficiais falam de 11% até 12%. Há outras cifras que apontam para 20%.
Subemprego (que é de supor que inclua o desemprego) —a observação que está entre parêntese fui eu que a acrescentei—, está por volta de 50%.
Quase um milhão de crianças em estado de sobrevivência —foi a palavra que ele empregou.
Mortalidade infantil de quase 28 por 1 000 nascidos vivos. Dos que morrem, 15% é por desnutrição.
Défice de habitação: 1 500 000.
Só uma por cada cinco crianças acaba a escola básica; 45% dos adolescentes não estão no ensino secundário.
Se me permitirem, por exemplo, em Cuba aproximadamente 95% dos abrangidos nessa faixa etária, encontram-se no ensino secundário. É quase o máximo ao que se pode chegar. Digo-o, porque a cifra de 45% que não freqüentam as escolas é realmente impressionante.
A esses dados, referidos pelo Presidente, na sua apertada síntese poderiam ser acrescentados outros extraídos de fontes variadas e fidedignas.
Mais de um milhão de crianças estão incorporadas ao mercado de trabalho; mais de 2,3 milhões excluídas do sistema escolar, não têm ofício nenhum.
Nos últimos dez anos, mais de um milhão de venezuelanos que eram da classe média, categoria "C" —como vocês sabem, na classe média estamos categorizados também—, passaram à categoria de pobres e indigentes, que hoje atinge 77% da população pela diminuição das rendas, desemprego e os efeitos da inflação. Quer dizer que "c", "d", "e" são as categorias que hoje incluem desde pobres até indigentes.
Isto acontecia, segundo disse o Presidente Chávez com profundas e amargas palavras, na pátria original de Bolívar, a nação mais rica em recursos naturais da América, com quase um milhão de quilómetros quadrados e não mais de 22 milhões de habitantes.
Tento meditar.
Devo dizer, em primeiro lugar e antes do mais, que sou amigo de Chávez (Aplausos). Mas ninguém me pediu nem me insinuou que abordasse tema nenhum. Nenhum dirigente da sua equipa, nenhum dirigente ou amigo venezuelano conhecia nada absolutamente a respeito do que eu diria esta tarde aqui, num ponto tão neurálgico e estratégico como a Universidade Central da Venezuela. Faço estas reflexões sob a minha total e absoluta responsabilidade, com a esperança de que sejam úteis.
Quais as questões que nos preocupam? Acho que neste momento há uma situação excepcional na história da Venezuela. Vi dois momentos singulares: o primeiro, aquele Janeiro de 1959, e vi 40 anos depois a extraordinária efervescência popular de 2 de Fevereiro de 1999. Vi um povo que renasce. Um povo como aquele que vi na Praza do Silêncio, onde fui um bocado mais silencioso do que aqui (Risos); que até uma réplica tive que lhe fazer a um magnífico caraquenho, porque eu, por elementar dever de visitante, mencionei algumas personalidades que estavam no governo, começando pelo almirante Larrazábal, e quando mencionei uma outra personalidade política importante do momento, houve lá um barulho, protestos, que ao mesmo tempo me obrigaram a protestar. Queixei-me, porque senti muita vergonha, acho que fiquei vermelho. E lhes disse: "Não menciono nenhum nome aqui para receberem vaias." Expressei a minha queixa à enorme massa que estava na Praza do Silêncio. Aquelas massas eram incontestavelmente revolucionárias.
Encontrei mais uma vez uma imagem impressionante ao ver o povo num estado anímico extraordinário, más em diferentes circunstâncias. Então as esperanças tinham ficado atrás. Não desejo explicar o porquê, deixo isto aos historiadores. Desta vez as esperanças estão no futuro, vejo nelas um verdadeiro renascer da Venezuela, ou pelo menos uma grande oportunidade excepcional para a Venezuela. Vejo-o não só em interesse dos venezuelanos; vejo-o em interesse dos latino-americanos, e o vejo em interesse do resto dos países do mundo, na medida em que este mundo avançar, porque não vai ter outro remédio para uma globalização universal. Não tem outra saída, nem alternativas. Portanto, com isto não pretendo vos adular, mas sim lembrar-lhes o dever de vocês, da nação, do povo, de todos os que nasceram depois daquela visita, dos mais novos, dos mais maduros, que realmente têm perante si uma grande responsabilidade. Acho que oportunidades se perderam algumas vezes; mas vocês não teriam perdão se perdessem esta (Aplausos).
Fala-lhes uma pessoa que teve o privilégio e a oportunidade de ter adquirido alguma experiência política, de ter vivido todo um processo revolucionário, inclusive num país onde, como lhes disse, as pessoas não queriam ouvir falar nem de socialismo. Quando falo em pessoas, refiro-me à grande maioria. Essa mesma maioria apoiava à Revolução, apoiava os dirigentes, apoiava o Exército Rebelde, mas havia fantasmas que a atemorizavam. O que fez Pavlov com os cães famosos, isso foi o que fizeram os Estados Unidos da América com muitos de nós, e quem sabe com quantos milhões de latino-americanos: criar-nos reflexos condicionados.
Tivemos que lutar muito contra as carências e a pobreza; tivemos que aprender a fazer muito com pouco. Tivemos momentos melhores e piores, sobretudo, quando conseguimos estabelecer acordos comerciais com o campo socialista e a União Soviética e exigimos preços mais justos para os nossos produtos de exportação; porque víamos que o que eles exportavam subia de preço e os nossos, se fazíamos um convénio por cinco anos, ficavam com esse mesmo preço durante esse período; então no fim do quinquénio tínhamos menos capacidade de compra. Propusemos a cláusula escorregadia: quando aumentavam o preços dos produtos que eles nos exportavam, aumentavam automaticamente os dos produtos que nós lhes enviávamos. Recorremos à diplomacia, à doutrina e à eloquência que supomos que exista entre os revolucionários de um país que tinha que vencer tantos obstáculos.
Realmente, os Soviéticos tinham simpatia por Cuba e grande admiração pela nossa Revolução; porque eles ficavam admirados de ver como um país muito pequeno, junto dos Estados Unidos da América, se revoltava contra a poderosa super-potência. O que menos se imaginavam e o que menos teriam aconselhado a ninguém, e por sorte que não lhe pedimos conselho a ninguém (Risos), embora já tínhamos lido quase toda a biblioteca inteira dos livros de Marx, Engels, Lenine e outros teóricos; éramos marxistas e socialistas convencidos.
Com essa febre e esse sarampo que costumamos ter os jovens, e inclusive muitas vezes os velhos (Aplausos), eu assumi os princípios básicos que aprendi com aquela literatura e me ajudaram a compreender a sociedade em que vivia, que até então era para mim um enredo muito grande, que não tinha explicação convincente de nenhuma índole. E devo dizer que o famoso Manifesto Comunista, que tantos messes levaram em redigir Marx e Engels
—vê-se que seu autor principal trabalhava muito conscientemente, frase que costumava utilizar, e deve tê-lo revisto mais vezes do que Balzac revia uma folha de qualquer um dos seus romances—, impressionou-me muito, porque pela primeira vez na minha vida vi algumas verdades que não tinha visto nunca.
Antes disso, eu era uma espécie de comunista utópico. Estudando um livro muito grande, impresso em folhas de mimeógrafo, ao redor de 900 páginas, o primeiro curso da economia que nos ensinavam na Escola de Direito, uma economia política inspirada nas ideias do capitalismo, mas que mencionava e analisava sucintamente as várias escolas e critérios, e depois no segundo curso, prestando-lhe muito interesse ao tema e meditando a partir dos pontos de vista racionais, fui tirando as minhas próprias conclusões e acabei por ser um comunista utópico. Classifico-o assim porque não se baseava sobre base científica e histórica nenhuma, mas sim nos bons desejos de aquele recém formado aluno da escola dos jesuítas, aos quais lhes estou muito agradecido, porque me ensinaram algumas coisas que me ajudaram na vida, sobretudo, a ter certa fortaleza, um certo sentido da honra e determinados princípios éticos, que eles, jesuítas espanhóis —embora muito distantes das ideias políticas e sociais que possa ter eu agora—, inculcavam-lhes aos seus alunos.
Mas de lá saí desportista, explorador, alpinista e entrei politicamente analfabeto à Universidade de Havana, sem a sorte de um preceptor revolucionário, que tão útil teria sido para mim naquela etapa da minha vida.
Por esses caminhos cheguei às minhas ideias, que conservo e mantenho com lealdade e fervor crescente, talvez por ter um bocado mais de experiência e conhecimentos, e também por ter tido a oportunidade de meditar sobre problemas novos que não existiam sequer na época de Marx.
Por exemplo, a palavra meio ambiente, não deve tê-la pronunciado ninguém em toda a vida de Carlos Marx, salvo Malthus que disse que a população crescia geometricamente; que a alimentação não daria para tantos, tornando-se assim numa espécie de precursor dos ecologistas, embora sustentava idéias em matéria económica e de salários com as quais não se pode estar de acordo (Risos).
Por conseguinte, uso o mesmo casaco com que vim a esta universidade há 40 anos (Aplausos), com que atacamos o Quartel Moncada, com que desembarcamos no Granma (Aplausos). Atrever-me-ia a dizer, apesar das tantas páginas de aventuras que qualquer pode encontrar na minha vida revolucionária, que sempre tentei ser sábio mas prudente; embora talvez tenha sido mais sábio do que prudente.
Na concepção e desenvolvimento da Revolução Cubana, agimos da maneira que disse Martí, ao falar do grande objectivo anti-imperialista das suas lutas, próximo a morrer em combate, que "Em silêncio teve que ser e como indirectamente, porque há coisas que para as conseguí-las têm que estar ocultas , e de serem proclamadas no que são, levantariam dificuldades muito grandes para atingir sobre elas o fim."
Fui discreto, não todo o que devia, porque com todas as pessoas que me encontrava lhes explicava as ideias de Marx e a sociedade de classes, de tal maneira que no movimento de carácter popular, onde a palavra de ordem na sua luta contra a corrupção era "Vergonha contra dinheiro", ao qual me tinha incorporado quando cheguei à universidade, já me estavam a dar a fama de comunista. Mas era já nos anos finais da minha carreira, não um comunista utópico, mas desta vez um comunista atípico, que agia livremente. Partia de uma análise realista da situação do nosso país. Era a época do Macarthismo, do isolamento quase total do Partido Socialista Popular, nome que tinha o partido marxista em Cuba, e havia porém, no movimento onde me tinha incorporado, convertido já em Partido do Povo Cubano, uma grande massa que, ao meu entender, tinha instinto de classe, mas não consciência de classe, de camponeses, trabalhadores, profissionais, pessoas de camadas médias, pessoas boas, honestas, potencialmente revolucionárias. Seu fundador e líder, homem de grande carisma, tinha-se privado da vida dramaticamente meses antes do golpe de Estado de 1952. Das jovens fileiras daquele partido, alimentou-se depois o nosso movimento.
Militava naquela organização política, que já realmente estava a cair, como acontecia com todas, nas mãos de gente rica, e sabia de cor todo o que ia acontecer depois do inevitável triunfo eleitoral; mas tinha elaborado algumas ideias, pela minha conta também —imaginem só que um utopista pode pensar en fazer qualquer coisa—, sobre o que havia que fazer em Cuba e a maneira de fazê-lo, apesar dos Estados Unidos da América. Era preciso levar aquelas massas por um caminho revolucionário. Talvez foi o mérito da táctica que nós seguimos. É claro, tínhamos os livros de Marx, Engels e Lenine.
Aquando do ataque ao quartel Moncada perdemos um livro de Lenine, e no julgamento, a primeira coisa que dizia a propaganda do regime de Batista, era que se tratava de uma conspiração de "priístas" corrompidos, do governo recentemente derrubado, com o dinheiro deles, e para além disso comunistas. Não se sabe de que maneira se podiam conciliar as duas categorias.
No julgamento, o que fiz foi assumir a minha própria defesa. Não era que me considerava um bom advogado, mas acreditava que o melhor que me podia defender naquele momento era eu mesmo; coloquei-me a beca e ocupei o meu lugar onde estavam os advogados. O julgamento era político, mais do que penal. Não pretendia sair absolvido, mas divulgar ideias. Comecei a perguntar-lhes a todos aqueles criminosos que tinham assassinado a dezenas e dezenas de companheiros que actuavam como testemunhas; o julgamento foi contra eles (Aplausos). De tal maneira, que no dia seguinte me tiraram de lá, separaram-me, declararam-me doente (Risos). Foi o último que fizeram, porque tinham muitos desejos de acabar comigo de uma vez; mas sabia muito bem porque não o fizeram. Conhecia e conheço qual era a psicologia de todas aquela gente, o estado anímico, a situação popular, o rechaço, e a enorme indignação que provocaram os seus assassinatos, e também tive um pouco de sorte; mas o facto é que nas horas iniciais, na altura em que estavam a me interrogar, apareceu o livro de Lenine, alguém o mostrou: "Vocês tinham um livro de Lenine."
Nós explicando o que éramos: martianos, era a verdade, que não tínhamos nada a ver com aquele governo corrompido que tinham tirado do poder, que tínhamos tais e tais objectivos. Mas de marxismo-leninismo não falamos nem uma palavra, nem tínhamos que lhes dizer nada. Dissemos o que lhes tínhamos que dizer, mas como no julgamento falaram do livro, eu senti uma verdadeira irritação nesse instante, e disse: "Sim, esse livro de Lenine é nosso; nós lemos os livros de Lenine e de outros socialistas, e aquele que não os leia é um ignorante", assim o afirmei aos juízes e aos outros naquele mesmo lugar (Aplausos).
Aquilo era insuportável. Não íamos dizer: "Olhe, esse livrinho alguém o colocou aí." Não, nada disso (Risos).
Depois estava o nosso programa, exposto na minha defesa no julgamento. Aquele que não soube como nós pensávamos era porque não o quis saber. Talvez quiseram ignorar aquele discurso conhecido como A História me Absolverá, com o que me defendi lá sozinho, porque como disse, fui expulso, declararam-me doente, julgaram os outros, mas a mim me enviaram para um hospital para me julgar, numa salinha; não fui internado no hospital propriamente dito, mas numa cela isolada do cárcere. No hospital tinha uma salinha pequenita transformada em audiência, com o tribunal e poucas pessoas apertadas, quase todas militares, onde me julgaram, e tive o prazer de poder dizer lá tudo o que pensava, tudo, bastante desafiante.
Pergunto-me, dizia-lhes naquela altura, por que é que não deduziram qual era o nosso pensamento, porque aí estava tudo. Possuía —poderíamos dizer— todos os alicerces de um programa socialista de governo, embora convencido, logicamente, de que esse não era o momento de o fazer, que isso ia ter as suas etapas e seu tempo. É quando falamos da reforma agrária, e falamos inclusive, entre muitas outras coisas do carácter social e económico, de que toda a mais-valia —sem falar essa palavra, como é lógico (Risos)—, os lucros que obtinham todos aqueles senhores que tinham tanto dinheiro, tinham que ser empregues no desenvolvimento do país, e dei a entender que o governo tinha que se responsabilizar com esse desenvolvimento e com aqueles excedentes de dinheiro.
Falei até do bezerro de ouro. Voltei a lembrar a bíblia e sublinhei: "aos que adoravam o velocino de ouro", em clara referência aos que o esperam todo do capitalismo. Um número suficiente de coisas para deduzir a maneira em que nós pensávamos.
Depois tenho meditado que é provável que muitos dos que poderiam ser afectados por uma verdadeira revolução não acreditaram nada em nós, porque em 57 anos de colónia ianque, tinha-se proclamado mais de um programa progressista ou revolucionário; as classes dominantes não acreditaram nunca no nosso, como possível ou permissível pelos Estados Unidos de América, não lhe prestaram nenhuma atenção, aceitaram-no, até foi engraçado para eles; no fim de contas todos os programas eram abandonados, as pessoas ficavam corruptas, e possivelmente disseram: "Está muito bonito, muito simpático; são as ilusões destes rapazes românticos, para que vamos pensar nisso?
Sentiam antipatia por Batista, admiravam o combate frontal contra o seu regime abusivo e corrupto, e possivelmente subestimaram o pensamento contido naquela alegação, onde estão as bases do que depois fizemos e o que hoje pensamos, com a diferença de que muitos anos de experiência têm enriquecido mais os nossos conhecimentos e percepções ao redor de todos aqueles temas. Portanto, esse é o meu pensamento, o disse desde aquele momento.
Vivemos a dura experiência de um longo período revolucionário, especialmente nos últimos 10 anos, encarando forças extremamente poderosas em circunstâncias muito difíceis. Bom, vou dizer a verdade: conseguimos o que parecia impossível conseguir. Eu diria que se fizeram quase milagres. Logicamente, as leis foram da maneira como se tinha prometido, surgiu furiosa a oposição sempre soberba e arrogante dos Estados Unidos da América, que tinha muita influência no nosso país, e o processo foi radicalizado perante cada golpe e agressão que recebíamos; assim começou a longa luta que durou até hoje. Polarizaram-se as forças no nosso país, com a sorte de que a imensa maioria estava com a Revolução, e uma minoria, que seria 10% ou menos, estava contra ela, de tal maneira que sempre houve um grande consenso e um grande apoio em todo aquele processo até hoje.
Sabemos das coisas que nos podemos preocupar, porque fizemos um grande esforço por ultrapassar aqueles prejuízos que existiam, por transmitir ideias, por criar consciência nas pessoas, e foi difícil.
Lembro a primeira vez que falei sobre a discriminação racial. Fui umas três vezes à televisão. Fiquei surpreso até que ponto tinham penetrado os prejuízos que nos trouxeram os vizinhos do Norte, mais do que supúnhamos: que tais clubes eram para brancos e os outros não podiam ir lá, e tais praias, quase todas as praias, sobretudo na capital, eram para brancos; até existiam parques e passeios públicos separados, onde uns iam numa direcção e outros iam na outra, segundo a cor da pele. Nós abrimos todas as praias para todo o povo e desde os primeiros dias proscrevemos a discriminação em todos os lugares de recreio, parques e passeios. Aquela humilhante injustiça era absolutamente incompatível com a Revolução.
Um dia falei e expliquei estas coisas. Houve uma grande reacção, boatos e mentiras!. Disseram que íamos obrigar o casamento entre os brancos e as negras, e entre as brancas e os negros. Da mesma maneira que aquela barbaridade que inventaram um dia de que lhe íamos tirar a pátria potestade à família. Tive que ir mais uma vez à televisão para falar sobre o tema da discriminação e responder todos aqueles boatos e intrigas e voltar a explicar. Aquele fenómeno, que não era mais do que uma cultura racista imposta, um humilhante e cruel prejuízo, custou muito trabalho de ser ultrapassado.
Isto é, dedicamos naqueles anos uma grande parte do tempo a formar consciências e a nos defender de expedições, ameaças de agressão externa, guerra suja, planos de assassinatos, sabotagens, etc. No nosso país chegou a ter bandos armados mercenários em todas as províncias, promovidos e fornecidos pelos governos dos Estados Unidos da América, mas lhes fizemos face, não lhes demos tempo, não tiveram nem a menor chance de se desenvolverem, porque estava muito recente a nossa própria experiência na luta irregular e praticamente fomos uns dos poucos países revolucionários que acabou totalmente com os bandos, apesar da ajuda logística que recebiam do estrangeiro. Nós empregamos muito tempo nisso.
Um problema, uma preocupação concreta que tenho, é que se vê, e é natural, que na Venezuela há muitas expectativas pelo resultado extraordinário das eleições. A quê me refiro? Refiro-me à tendência, natural, lógica, na população de sonhar, de desejar que uma grande quantidade de problemas amontoados sejan resolvidos nalguns meses só. Como amigo honesto de vocês, e pela minha própria experiência, penso que há problemas que não vão ser resolvidos nem em meses, nem em anos (Aplausos).
Por isso li todos esses dados, porque dados semelhantes os estamos a ver e analisar todos os dias no nosso país, qual é o preço do níquel ou do açúcar, qual foi o rendimento de cana por hectare, se houve seca ou não, quanto é a receita, quanto se deve, o que há que comprar com urgência, quanto é que custa o leite em pó, os cereais, os medicamentos indispensáveis, os inputs produtivos o resto das coisas, e o quê deveríamos fazer.
Num determinado momento conseguimos impulsionar as produções açucareiras, quase as duplicamos, bons preços, adquirimos equipamentos e começamos a construção de obras de infra-estrutura, aumentaram-se os investimentos na indústria, na agricultura, só estávamos limitados pelos recursos tecnológicos soviéticos, que nalgumas coisas estavam mais adiantados e noutras estavam mais atrasados, geralmente gastavam muito combustível.
Contudo, comprávamos todo o aço que necessitávamos por cima da produção nacional. Todos os anos chegavam a Cuba meio milhão de metros cúbicos de madeira da Sibéria, adquirida com açúcar, níquel e outros produtos que, em virtude do acordo escorregadio, o acordo alcançado antes da explosão do preço do petróleo, subiu o preço do açúcar e doutras exportações na mesma medida em que subiu o preço do petróleo (Aplausos). E sabem quanto chegamos a consumir? Treze milhões de toneladas por ano de combustíveis, não só por todos os serviços de transportação, a mecanização da agricultura, das construções, das instalações dos portos, dezenas de milhares de quilómetros de estradas, centenas de barragens e micro-barragens, fundamentalmente para a agricultura, moradias, vacarias, todas com ordenha mecânica, inúmeras escolas, milhares de escolas e outras instalações sociais, mas também pelo consumo energético das indústrias e nas habitações. A electrificação do país chegou a beneficiar 95% da população. Havia recursos, e o que poderia dizer é que nem sequer éramos capazes de administrá-los com o máximo de eficiência.
Agora sim aprendemos. Na época onde há abundância não se aprende muito, na época das carências, das carências mesmo, então se aprende bastante; mas fizemos muitas coisas que nos permitiram esses resultados no sector económico, no social e muitas outras coisas das quais lhes falei.
O nosso país tem o primeiro lugar na educação, em professores por habitantes. Presentemente foi feito um relatório da UNESCO com o qual não ficamos muito satisfeitos. Realizaram um inquérito entre 54 000 crianças da terceira e quarta classe, sobre os conhecimentos delas nas matemáticas e na linguagem, em 14 países de América Latina, entre eles os mais avançados, e obtiveram com isso uma média: nuns estavam por em cima da média e noutros estavam por baixo; mas o lugar que lhe correspondeu a Cuba foi por ampla margem o primeiro lugar, quase o duplo da média do resto da América Latina (Aplausos). Em todos os indicadores, por exemplo idade dos alunos por nível, retenção escolar, não repetentes e outros factores que medem a qualidade do ensino básico, ocupamos sem excepção, o lugar de honra, colocando unicamente o nosso país na categoria 1.
Há uma grande massa de novos professores, e todos os anos acumulam mais conhecimento e experiência, da mesma maneira que existe uma grande massa de médicos e todos os anos adquirem mais conhecimentos. Acontece o mesmo com os profissionais em geral e nalguns outros domínios. A percentagem da receita bruta que investimos na ciência é incomparavelmente mais alta que a dos países mais avançados da América Latina, com dezenas de milhares de trabalhadores cientistas, muitos deles com títulos de pós-graduação e conhecimentos crescentes. Temos feito muitas coisas e investimos, sobretudo, em capital humano.
Qual pode ser um temor? Isso, que digo aqui com toda franqueza, estou disposto a dizê-lo em qualquer parte. Vocês viveram épocas de abundâncias (Dizem-lhe que há muito tempo), faz tempo, concordo. Em 1972 o preço do barril de petróleo era de 1,90 dólares. Cuba, por exemplo, aquando do triunfo da Revolução, com umas poucas centenas de milhares de toneladas de açúcar, comprava os 4 milhões de toneladas de combustível que consumia, ao preço mundial normal do açúcar, naquela altura. Salvou-nos o preço escorregadio antes falado, no momento da súbita elevação do custo do combustível; mas quando veio a crise, acabou a URSS, e com ela o nosso principal mercado e todo tipo de preço pactuado, tivemos que reduzir à metade os 13 milhões de toneladas de combustível que já estávamos a consumir; uma grande parte do que exportávamos o tínhamos que investir em combustível, e aprendemos a poupar.
Já lhes falei dos jogadores de beisebol, mas posso acrescentar que em cada comunidade e em cada aldeia havia jogadores de beisebol, e estava o tractor a transportar em carroças os jogadores, os torcedores e a todas as pessoas para o jogo, inclusive tinham muitos operadores agrícolas que iam visitar a namorada no tractor (Risos). Tínhamos passado de 5 000 tractores para 80 000.
O povo era dono de tudo e nós tínhamos mudado de sistema, mas não tínhamos aprendido muito bem a maneira em que se controla e administra tudo isso, e além disso tivemos alguns erros de idealismos. Porém tínhamos mais coisas que compartilhar das que hoje temos. Mais de um disse que Cuba tinha "socializado a pobreza". Respondíamos-lhes: "É, mas é melhor socializar a pobreza do que distribuir as poucas riquezas entre uma pequena minoria que leva tudo e o resto do povo não recebe nada."
Agora mais do que nunca estamos obrigados a distribuir o que temos com a máxima equidade possível. Porém, no nosso país se produziram privilégios, por causas que para nós foram inevitáveis: remessas familiares, turismo, abertura ao investimento estrangeiro em determinados ramos, questões que travaram mais a tarefa no terreno político e ideológico, porque a força do dinheiro é grande, não se pode subestimar.
Tivemos que lutar muito com todo isto, mas tiramos a conclusão de que numa urna de vidro podia-se ser muito puro, e quem vivesse assim, numa assepsia total, o dia que sair dela, um mosquito, um insecto, uma bactéria dava cabo dele, da mesma maneira que mataram grande quantidade de naturais deste hemisfério, as muitas bactérias, parasitas e vírus que trouxeram os espanhóis. Não tinham
como imunidade contra elas. Por conseguinte dissemos: "Vamos aprender a trabalhar em condições difíceis, porque realmente a virtude se desenvolve na luta contra o vício". E desta maneira tivemos que encarar muitos problemas nas circunstâncias actuais.
Vocês tiveram uma etapa de enormes receitas, quando aumentou o preço para 1,90 dólares por barril em 1972, para 10,41 em 1974, para 13,03 em 1978, para 29,75 em 1979, até chegar ao fabuloso preço de 35,69 em 1980. Durante os cinco anos seguintes, entre 1981 e 1985, o preço médio por barril foi de 30,10 dólares, um verdadeiro rio de receitas em divisas conversíveis, por este conceito. Conheço a história do que aconteceu depois, porque tenho muitos amigos, profissionais, e todas as vezes que os via, perguntava-lhes como estava a situação, qual era o seu salário então e qual era a sua receita real 10 anos depois. Tenho sido testemunha de como foram diminuindo de um ano para outro, até hoje. Não me corresponde fazer análise de outro tipo. Sempre lhes fazia aos venezuelanos aquelas perguntas pensando na situação do país. Hoje não são tempos de abundâncias nem para a Venezuela nem para o mundo. Cumpro um dever honesto, um dever de amigo, um dever de irmão, ao lhes sugerir a vocês, que constituem uma poderosa vanguarda intelectual, meditar profundamente sobre estes temas, e exprimir-lhes ao mesmo tempo a nossa preocupação de que essa lógica, natural e humana esperança, nascida de uma espécie de milagre político que tem acontecido na Venezuela, possa ser traduzido a curto prazo em decepções e num enfraquecimento de tão extraordinário processo (Aplausos).
Pergunto-me, devo fazê-lo e o faço. Quais as proezas, quais os milagres económicos podem ser esperados de imediato, com os preços dos produtos básicos de exportação venezuelanos, profundamente deprimidos e o petróleo a 9 dólares por barril, isto é, o preço mais baixo nos últimos 25 anos, com um dólar que tem menor poder aquisitivo do que naquela altura, uma população muito maior, uma enorme acumulação de problemas sociais, uma crise económica internacional e um mundo neoliberalmente globalizado?
Não posso nem devo dizer uma palavra do que faríamos em circunstâncias como estas. Não posso, estou cá como visitante, não como conselheiro, nem de opinante, nem coisa parecida. Simplesmente medito.
Gostaria dizer-lhes que não quero fazer referência a países, mas há alguns deles que são muito importantes, com uma situação ainda mais difícil do que a de vocês, tomara que pudessem ultrapassar as dificuldades.
A situação de vocês é difícil, mas não catastrófica. Assim o veríamos se nós estivéssemos na situação de vocês. Vou-lhes dizer mais uma coisa —com a mesma franqueza—, vocês não podem fazer o mesmo que nós fizemos em 1959. Vocês terão que ter muita mais paciência do que nós, e refiro-me àquela parte da população que anseie mudanças sociais e económicas radicais imediatas no país.
Se a Revolução Cubana tivesse triunfado num momento como este, não se poderia ter sustentado. A própria Revolução Cubana que fez o que fez. Surgiu, e não por cálculos, mas por uma estranha coincidência histórica, 14 anos depois da Segunda Guerra Mundial, num mundo bipolar. Nós não conhecíamos nem um só soviético, nem nunca recebemos nem uma bala de um soviético para levar para afrente a nossa luta e a nossa Revolução, nem tampouco nos deixamos levar por assessoramento político nenhum depois do triunfo, nem ninguém o intentou nunca, porque éramos muito teimosos com isso. Os latino-americanos, em especial, não gostamos que nos digam nem nos façam sugestões de idéias ou coisas.
Logicamente, naquele momento, existia um outro pólo poderoso, atirávamos a âncora naquele pólo nascido precisamente de uma revolução social, âncora essa que nos serviu de muito perante o monstro que tínhamos afrente, que logo que fizemos uma reforma agrária, cortou-nos de imediato o petróleo e outros fornecimentos vitais e diminuiu, até levar a zero, as importações do açúcar cubano, e fomos privados num minuto de um mercado que se formou durante mais de cem anos. Ao passo que, aqueles nos venderam petróleo a preço mundial, sim; que devíamos pagar com açúcar, sim; a preço mundial de açúcar, sim. Mas o açúcar foi exportado para URSS e chegou petróleo, matérias primas, alimentos e muitas outras coisas mais. Deu-nos tempo a formar uma consciência, a semear idéias, a criar uma nova cultura política (Aplausos), deu-nos tempo!, suficientemente tempo para criar a fortaleza que nos permitiu resistir depois os tempos mais difíceis incrivelmente.
Todo o internacionalismo que praticamos, antes referido, também nos deu força.
Penso que nenhum outro país tem vivido circunstâncias mais difíceis. Não há vestígio de vanglória ao dizer-lhes, tentando ser objectivo, que nenhum outro país do planeta teria resistido. Pode ter algum, se penso nos vietnamitas, acho que os vietnamitas eram capazes de qualquer resistência (Aplausos), penso nos chineses e os chineses também eram capazes, da mesma maneira, de qualquer proeza.
Há povos que têm características e condições peculiares; realmente culturas muito enraizadas e muito próprias, herdadas dos seus milenários antecessores, o que cria uma enorme capacidade de resistência. Em Cuba se tratava de uma cultura em grande parte herdada de um mundo que virou adversário, ficamos cercados por todas partes de regimes hostis, campanhas hostis, bloqueio, pressões económicas de todo tipo, que complicavam extraordinariamente a nossa tarefa revolucionária: seis anos de luta contra os bandos, com os que o vizinho poderoso instrumentava as suas tácticas de guerra suja, muitos anos de luta contra os terroristas, planos de assassinatos, e um monte de coisas mais; contudo gostaria lhes dizer apenas que me sinto muito privilegiado, depois de 40 anos, por ter podido voltar a este, para mim inesquecível e querido, lugar (Aplausos), como testemunho da ineficiência e o fracasso dos que tantas vezes quiseram adiantar em mim o processo natural e inevitável da morte.
Agora podemos dizer, como me disse um tenente que me fez prisioneiro num bosque, no amanhecer, próximo de Santiago de Cuba, alguns dias depois do assalto ao quartel Moncada. Cansados de ter que repousar sobre pedras e raízes tínhamos cometido o erro —sempre há um erro—, de dormir numa pequena barraca coberta de folhas de palma que estava por aí, e nos acordaram com os fuzis sobre o peito, um tenente por acaso negro, por sorte, e uns soldados que tinham as veias inchadas, desejosos de sangue, e sem saber quem éramos. Não tínhamos sido identificados. Nos primeiros momentos não fomos identificados, perguntaram-nos os nomes, eu disse um qualquer: prudência, não é? (Risos), astúcia, não é? (Aplausos), talvez intuição, instinto. Posso afirmar-lhes que não tive medo, porque há momentos na vida que é assim, quando a gente se vê morta, então o que melhor reage é a honra, o orgulho, a dignidade.
Se lhes tivesse dado o meu nome, o quê teria acontecido? Ratatatatá: tivessem dado cabo de imediato do pequeno grupo. Uns minutos depois encontraram nas proximidades várias armas deixadas ali por uns companheiros que não estavam em condições físicas de continuar a luta, alguns deles feridos, que por acordo de todos estavam a voltar à cidade para se apresentar directamente às autoridades judiciárias. Ficamos três, só três companheiros armados!, que fomos capturados da forma que expliquei.
Mas aquele tenente, que coisa incrível! —isto nunca o contei pormenorizadamente em público—, estava a acalmar os soldados, e já quase não podia. Começaram a revistar os arredores, onde encontraram as armas do resto dos companheiros e ficaram muito furiosos. Tinham-nos amarrado e nos apontavam com fuzis carregados; mas aquele tenente se movimentava de um lado para o outro, acalmando-os e repetindo em voz baixa: "As ideias não se matam, as ideias não se matam." Não sei porque aquele homem lhe deu por dizer aquilo?
Era um homem maduro, tinha estado a estudar qualquer coisa na universidade, alguns cursos; mas tinha aquela ideia na cabeça, e lhe deu por exprimí-la em voz baixa, como se estivesse a falar com ele próprio: "As ideias não se matam". Ora bem, quando observo aquele homem e o vejo com aquela atitude, e num momento crítico, impedindo com muita dificuldade que aqueles homens não disparassem, levantei-me e lhe disse: Tenente —logicamente a ele sozinho—, eu sou fulano, responsável principal da ação; e como vejo que se tem comportado como um cavalheiro, não posso enganá-lo, quero que saiba a quem tem prisioneiro". E o homem me disse: "Não diga a ninguém!" "Não diga a ninguém!" (Aplausos). Eu aplaudo àquele homem porque me salvou a vida três vezes numas horas.
Uns minutos depois somos levados, e os soldados, muito furiosos ainda, colocam-se em posição de combate quando ouvem perto de lá uns tiros; e nos dizem: "Atirem-se para o chão, atirem-se para o chão!" Eu fiquei de pé e digo: "Eu não me vou atirar!". Achei que era uma manha para nos eliminar, e digo: "Não." O disse para o tenente, que insistia que nos protegêssemos: "Não me atiro para o chão, se querem disparar, que disparem." Então ele me diz -olhem, rapazes, vocês são muito valentes." Foi uma reacção incrível!
Não quero dizer que nesse momento me salvou a vida, nesse momento teve esse gesto. Quando chegamos a uma estrada, subiram-nos num caminhão e perto de ali havia um comandante que era muito sangrento, tinha assassinado muitos companheiros e queria que lhe fossem entregues os prisioneiros; o tenente negou-se, disse que eram os seus prisioneiros e que não os ia entregar. Subiu-me na cabine. O comandante queria que nos levasse para o Moncada, mas ele nem nos entregou ao comandante —ai nos salvou pela segunda vez— nem nos levou para o Moncada; levou-nos para a prisão, no centro da cidade, pela terceira vez me salvou a vida. Vejam só, e era um oficial daquele exército contra o qual estávamos a lutar. Depois quando triunfou a Revolução, nós o promovemos e foi capitão, ajudante do primeiro Presidente do país, depois do triunfo.
Como disse aquele Tenente, as ideias não se matam (Aplausos), nossas ideias não morreram, ninguém conseguiu matá-las; e as ideias que semeamos e desenvolvemos nestes trinta e tal anos, até 1991, mais ou menos, quando se inicia o período especial, foram as que nos deram forças para resistir. Sem esses anos onde educamos, semeamos ideias, consciência, sentimentos de profunda solidariedade dentro do povo e um generoso espírito internacionalista, o nosso povo não teria tido força para resistir.
Falo de coisas que têm a ver um bocado com questões de estratégia política, muito complicadas, porque podem ser interpretadas de uma forma ou doutra, e sei muito bem o que quero exprimir. Disse que nem sequer uma revolução como a nossa, que triunfou com o apoio de mais de 90% da população, apoio unânime, entusiasta, grande unidade nacional, uma força política tamanha, poderia ter resistido, não poderíamos ter preservado a Revolução nas actuais circunstâncias deste mundo globalizado.
Não estou a aconselhar a ninguém que deixe de lutar, por uma via ou por outra, há muitas, e entre elas a ação das massas, onde o seu papel e força crescente é sempre decisivo.
Hoje nós próprios estamos envolvidos numa grande luta de ideias, de transmissão de ideias para todas as partes, é o nosso trabalho. Hoje não diríamos a ninguém: Faz uma revolução como a nossa, porque não poderíamos, nas circunstância que conhecemos, ao nosso entender, bastante bem, sugerir: Façam o que nós fizemos. Talvez se estivéssemos naquela época poderíamos dizer: Façam o que nós fizemos; mas naquela época o mundo era outro, eram outras as experiências. Nós temos muito mais conhecimentos, muita mais consciência dos problemas, e logicamente, por em cima de tudo está o respeito e a preocupação pelos outros.
Aquando dos movimentos revolucionários na América Central, onde lhes resultou muito difícil a situação, porque já existia um mundo unipolar, e nem sequer conseguiu manter o poder a revolução na Nicarágua, e eles estavam a debater sobre as negociações de paz, visitavam-nos muito; tinham com Cuba uma longa amizade, pediam-nos opiniões e lhes dizíamos: Não nos peçam opiniões sobre isso. Se nós estivéssemos no lugar de vocês saberíamos o que fazer, ou poderíamos pensar o que deveríamos fazer; mas não se deve dar opiniões a outro, quando o outro é o que tem que aplicar opiniões ou critérios sobre questões tão vitais como são: lutar até a morte ou negociar. Isso só o podem decidir os próprios revolucionários em qualquer país. Nós apoiaremos a decisão que eles tomarem. Foi uma experiência singular, também faço referência a isto pela primeira vez em público. Cada um tem as suas opções, mas ninguém tem o direito de transmitir aos outros a sua própria filosofia perante a vida ou a morte. Por isso digo que é muito delicado dar opiniões.
Outra questão é o caso dos critérios, pontos de vista e opiniões sobre questões globais, que afectam o planeta, tácticas e estratégias de luta recomendáveis. Como cidadãos do mundo e membros da espécie humana, temos o direito a exprimir com toda a clareza, o nosso pensamento a todos aqueles que nos queiram escutar, seja revolucionário ou não.
Faz muito tempo que aprendemos como devem ser as relações com as forças progressistas e revolucionárias. Aqui, perante vocês, limito-me a transmitir ideias, reflexões, conceitos que são compatíveis com a nossa condição comum de patriotas latino-americanos, porque, repito, vejo uma nova hora na Venezuela, pilar inalterável e inseparável da história e do destino da nossa América. Temos o direito de confiar na experiência ou no nosso ponto de vista, não porque sejamos infalíveis, nem muito menos, ou porque não tenhamos errado, senão porque tivemos a oportunidade de estudar no longo curso de uma academia de 40 anos de Revolução.
Por isso lhes disse que a situação de vocês não é catastrófica, nem muito menos, embora seja uma situação económica difícil, que entranha riscos para essa oportunidade que parece-nos estar a ver.
Têm acontecido casualidades que impressionam. Veio a acontecer esta situação na Venezuela num momento crítico da integração da América Latina; um momento especial, em que todos os que estão mais para o sul, no seu esforço unitário, necessitam da ajuda dos do norte de América do Sul (Aplausos), isto é, necessitam a ajuda de vocês. Chegou o momento em que o Caribe necessita de vocês. Chegou o momento em que vocês podem ser o enlace, a ponte, a dobradiça —da maneira que o queiram chamar—, ou uma ponte de aço entre o Caribe, América Central e América do Sul. Ninguém tem as condições de vocês para lutar por alguma coisa tão importante e prioritária neste instante difícil, pela união, a integração, isto é, pela sobrevivência se quiserem, não só da Venezuela, mas também de todos os países da nossa cultura, da nossa língua e da nossa raça. (Aplausos).
Hoje mais do que nunca há que ser bolivariano; hoje mais do que nunca temos que levantar essa bandeira que diz que pátria é humanidade, cientes de que só nos poderemos salvar, no caso em que a humanidade se salvar (Aplausos); de que só poderemos ser livres se conseguirmos que a humanidade seja livre, e estamos muito longe de o ser; se conseguirmos realmente que exista um mundo justo, e um mundo justo é possível e é provável, embora pela força de ver, meditar e ler, cheguei à conclusão de que a esta humanidade não lhe resta muito tempo para o conseguir.
Não só lhes dou o meu critério, mas o critério de muitos que tenho recolhido. Há alguns dias fizemos um congresso de 1 000 economistas, 600 deles de mais de 40 países, muitas pessoas eminentes e estávamos a discutir com eles as exposições; 55 exposições programadas foram discutidas, debatidas, sobre estes problemas da globalização neoliberal, a crise económica internacional, o que está a acontecer. Porque deveria ter acrescentado que, infelizmente, não tenho muitas esperanças de que os preços dos produtos básicos de vocês aumentem no próximo ano, nos próximos dois ou três anos.
Nós também temos o níquel à metade do preço; vejam só, estava a 8 000 dólares a tonelada não há muito tempo, e agora está a 4 000. O açúcar há dois dias estava a seis centavos e meio, que não cobre nem sequer as despesas do custo de produção, as despesas de combustível, sobressalentes, força de trabalho, inputs produtivos, etc. Esse é um problema social, não só económico, centenas de milhares de trabalhadores moram nestes lugares com grande amor e enraizadas tradições de produção açucareira, transmitida de geração para geração, e nós não lhes vamos fechar as fábricas; mas a produção açucareira neste momento deixa perdas.
Temos alguns recursos. O turismo, desenvolvido com os nossos próprios recursos, no fundamental, tem atingido um grande impulso nestes anos, e temos adoptado uma série de decisões que têm sido efectivas. Não lhes vou a explicar como é que nós fizemos para conseguir aquilo que lhes expliquei sem política de choque, as famosas terapias que com tanta insensibilidade foram aplicadas noutras partes, senão com medidas de austeridade que foram consultadas com todo o povo. Antes de ir ao Parlamento foram ao povo e foram discutidas com todos os sindicatos, com todos os trabalhadores, com todos os camponeses, o quê fazer com este preço, qual aumentar e por que, e qual não e por que; e com todos os estudantes, em centenas de milhares de assembleias. Foram então à Assembleia Nacional e depois voltaram outra vez à base. Foram discutidas todas as decisões que iam ser tomadas, porque aquilo que é aplicado se consegue por consenso. Isso não o consegue ninguém pela força.
Os sábios do Norte acreditam ou simulam acreditar que é pela força que existe uma Revolução cubana. Os miolos deles não são suficientes para reparar que no nosso país, educado em elevados conceitos revolucionários e humanos, isso seria impossível, absolutamente impossível (Risos e aplausos). Isso só se consegue através do consenso, só com isso; não o pode conseguir ninguém no mundo, se não é com o máximo apoio e cooperação do povo. Mas o consenso tem os seus requisitos. Aprendemos a criá-lo, a mantê-lo, a defendê-lo. Então, há que ver o que é a força de um povo unido, decidido a lutar e vencer.
Numa ocasião aconteceu um pequeno distúrbio, que não era político no essencial; tratava-se de um momento em que os Estados Unidos da América incentivava por todos os meios as saídas ilegais para o seu território, e ali aos cubanos lhes dão a residência automática —o que não concedem a nenhum cidadão de outro país do mundo—, e que incentiva que qualquer um, ajudado pela corrente do Golfo, faça até uma balsa mais segura que a Kon-Tiki para viajar para o rico pais ou empregue embarcações de motor; há muitas pessoas que têm barcos desportivos. Os recebiam com todas as honras, roubavam barcos e eram acolhidos lá como heróis.
Num incidente associado a um plano de roubar um barco de passageiros no porto de Havana para a desordem migratória, provocou uma certa perturbação pela questão dos barcos, e alguns começaram a atirar pedras contra algumas vidraças. Então, qual foi o nosso método? Nunca temos usado nenhum soldado nem um polícia contra civis. Nunca houve um carro de bombeiros a lançar poderosos jactos contra pessoas, como essas imagens que aparecem na própria Europa, quase todos os dias, ou pessoas com escafandro que parece que vão sair de viagem para o espaço (Risos e aplausos). Não, é o consenso o que mantém a Revolução, o que lhe dá força.
Lembro-me que nesse dia estava chegando ao meu escritório, era por volta do meio dia e deram-me a notícia. Chamei os escoltas e os reuni, eles tinham armas, e digo-lhes: "Vamos ao lugar das desordens. Proibido terminantemente usar uma arma!" Na verdade, eu preferia que disparassem contra mim, do que empregar as armas em situações desse tipo, por isso dei-lhes instruções categóricas e foram comigo para lá disciplinados.
Quanto duraram os distúrbios quando lá chegamos? Um minuto, talvez segundos. O povo estava nas varandas das casas, a maioria —mas estavam como se estivessem desapontados, surpreendidos—, uns marginais lá a atirarem pedras, e de repente, acho que até os que atiravam pedras começaram a aplaudir, a massa inteira se movimentou, tinham que ver o impressionante que foi aquilo, como reage o povo quando se apercebe de qualquer coisa contra a Revolução!
Bom, eu pensava chegar ao Museu de Cidade de Havana onde estava o historiador da Cidade: "Como estará Leal? Diziam que estava cercado no Museu da capital. Mas aos poucos metros, perto do Malecón (a marginal de Havana), uma grande multidão nos acompanhava, não se via nenhum sinal de violência. Tinha dito: "Que não se mova nenhuma unidade, nem um arma, nem um soldado." Se há confiança no povo, se há moral perante o povo, não há que empregar jamais as armas; no nosso país jamais as empregamos (Aplausos).
Portanto faz falta unidade, cultura política e apoio consciente e militante do povo. Nós conseguimos criar isso em muito tempo de trabalho. Vocês, os venezuelanos, não o poderão criá-lo nuns dias, nem em meses,
Se em vez de ser um velho amigo, alguém a quem vocês lhe fizeram a honra tão grande de o receber com afecto e confiança; se no lugar de um velho e modesto amigo —digo-o com toda franqueza—, estou completamente convencido, estivesse algum dos pais da pátria venezuelana, atrevo-me a dizer mais, se aquele homem de tanta grandeza e tanto talento que sonhou com a unidade da América Latina estivesse aqui a falar com vocês neste instante, estaria a dizer-lhes: "Salvem este processo! Salvem esta oportunidade!" (Aplausos prolongados.)
Acho que vocês podem ser felizes e vão se sentir felizes com muitas das coisas que podem fazer, muitas que estão ao alcance da mão, que depende de fatores subjectivos e de muito poucos recursos. Isso nós o fizemos; mas não se poderia pensar em recursos abundantes: apenas com operações de soma e resta, é suficiente para compreender. Vocês podem encontrar recursos, e os podem encontrar em muitas coisas para atender questões prioritárias, fundamentais, essenciais; mas não se pode nem sonhar de que por agora possa a sociedade venezuelana dispor mais uma vez dos recursos que numa altura teve e que chegaram numas circunstâncias muito diferentes. Há um mundo em crise, uns preços muito baixos para produtos básicos, e isso o inimigo tentaria de o utilizar.
Podem ter a certeza de que os nossos vizinhos do Norte não se sentem nada felizes com este processo que está a acontecer na Venezuela (Aplausos), nem desejam sucessos (Do público dizem-lhe qualquer coisa).
Não venho cá a semear a discórdia, nem muito menos; pelo contrário, estaria a colocar sabedoria com prudência, com toda a prudência necessária, a necessária e não mais que a necessaria; mas vocês devem ser políticos hábeis, inclusive devem ser diplomatas hábeis; não podem assustar a muitas pessoas. Mais por velho do que por diabo lhes sugiro que restem o menos possível (Risos e aplausos).
Uma transformação, uma mudança, uma revolução no sentido que tem essa palavra hoje, quando se olha mais para além do pedaço de terra que nos viu nascer, quando se pensa no mundo, quando se pensa na humanidade, então há que somar. Somem e não restem. Vejam só, aquele tenente que chefiava o pelotão que me fez prisioneiro, somou-se, não se restou (Aplausos). Eu fui capaz de compreender como era aquele homem. E dessa maneira conheci alguns na minha vida, poderia dizer que muitos.
É verdade que a condição social, a situação social é o que contribui mais a formação da consciência das pessoas; mas afinal fui filho de um latifundiário, que tinha bastante terra para o tamanho de Cuba —na Venezuela talvez não—; mas meu pai chegou a ter ao redor de 1 000 hectares de terras próprias e 10 000 hectares de terras alugadas que ele explorava. Nasceu na Espanha, jovem e pobre camponês, o levaram a lutar contra os cubanos.
Alguém há alguns dias, numa importante revista norte-americana, tentando ofender os espanhóis, zangado porque os espanhóis têm aumentado os seus investimentos na América Latina, publicou um artigo incisivo contra Espanha. Via-se que estavam raivosos, ambicionam tudo para eles, não querem nem uma peseta espanhola investida nestas terras, ainda menos em Cuba, e dizia entre outras coisas: Apesar dos seus ataques contra o imperialismo, Fidel Castro é um admirador da reconquista. Dava a imagem de uma reconquista dos espanhóis. Chamava-se "Na busca do novo El Dorado", e num momento do seu furioso ataque acrescenta: O governante cubano, filho de um soldado espanhol que lutou no lado errado na guerra de independência, não critica a reconquista.
Penso no meu pai, que devem tê-lo trazido aos 16 ou 17 anos, recrutado lá, enviado para Cuba eram feitas as coisas naqueles tempos, e colocado numa linha fortificada espanhola. Realmente o meu pai pode ser acusado de ter lutado do lado errado? Não, lutou do lado certo, lutou do lado dos espanhóis. O quê queriam?, que fosse douto em marxismo, internacionalismo e vinte milhões de coisas mais, quando o meu pai quase não sabia nem ler nem escrever? (Aplausos). Recrutaram-no, com certeza, meditei e em todo caso lutou do lado certo, os errados são os da revista ianque: se tivesse lutado do lado dos cubanos teria estado do lado errado, porque não era o seu país, nem sabia nada disso, nem podia entender por que é que estavam a lutar os cubanos. Era um simples recruta, isto é, trouxeram-no para cá da mesma maneira que trouxeram outras centenas de milhares. Depois de acabada a guerra o enviam para Espanha. Voltou a Cuba pouco tempo depois para trabalhar como peão.
Mais tarde o meu pai foi latifundiário, nasci e vivi num latifúndio e não me prejudicou, permitiu-me fazer contacto com os meus primeiros amigos, que eram crianças pobres desse lugar, filhos de operários assalariados e de modestos camponeses, vítimas todos do sistema capitalista. Depois fui a escolas de mais elite, poderíamos dizer, mas saí bem, por sorte. Digo realmente por sorte. Tive a sorte de ser filho e não neto de latifundiário, porque se chego a sê-lo, possivelmente teria nascido, vivido e crescido nalguma cidade, entre crianças ricas, de um bairro muito distinto, e nunca tivesse adquirido as minhas ideias de comunista utópico ou de comunista marxista nem nada parecido; na vida ninguém nasce revolucionário, nem poeta, nem guerreiro, nem muito menos, são as circunstâncias as que fazem o homem ou lhe dão a oportunidade de ser uma coisa ou outra.
Se Colombo tivesse nascido um século antes, ninguém teria ouvido falar dele. Espanha ainda estava ocupada em parte pelos árabes. Se não chega a estar errado, e realmente tivesse existido um caminho por mar direto para a China, sem tropeçar com um imprevisto continente, teria durado uns 15 minutos nas costas da China; porque se Cuba foi conquistada com 12 cavalos, já os mongóis naquela época tinham exércitos de cavalarias de centenas de milhares de soldados (Aplausos). Vejam só o que são as coisas.
De Bolívar não digo nada, porque Bolívar nasceu onde tinha que nascer no día em que tinha que nascer e na forma em que tinha que nascer. chega! (Aplausos). Deixo de lado a hipótese do que teria acontecido se tivesse nascido 100 anos antes ou 100 anos depois, porque isso era impossível (Risos) (Do público lhe dizem: "Che").
Che? Che tem estado cada segundo das minhas palavras aqui presente e falando desde aqui! (Aplausos prolongados).
Já vou acabar. Há uns industriais a minha espera (Risos). Como é que mudo de discurso? Vejam só, vou-lhes dizer o mesmo, com toda honestidade, por em cima de tudo (Risos). Acho que há um lugar para todas as pessoas honradas neste país, para todas as pessoas com sensibilidade, para todas as pessoas capazes de escutar a mensagem da pátria e da hora, eu diria a mensagem da humanidade, que é aquela que vocês devem transmitir aos seus compatriotas.
Falei-lhes de uma reunião onde participaram 600 economistas de muitos países, muitas pessoas muito inteligentes e das mais variadas escolas, analisamos todos estes problemas profundamente. Não queríamos uma reunião sectária, ou de esquerda, ou de direita; até Friedman foi convidado, mas é lógico, já com 82 anos, ele se desculpou e disse que não podia. Convidamos até o senhor Soros, para que defendesse lá os seus pontos de vista, aos Chicago Boys, aos monetaristas, aos neoliberais, porque o que queríamos era discutir, e discutimos durante cinco dias, começou numa segunda-feira e acabou na sexta-feira.
Essa reunião surgiu de uma sugestão que fiz numa reunião latino-americana anterior de economistas. Falava-se de muitas coisas e lhes disse; Mas com os problemas que temos à frente agora, por que é que não nos concentramos na crise económica e nos problemas da globalização neoliberal? E assim se fez. Foram enviadas centenas de exposições, foram escolhidas 55, foram debatidas todas, as outras serão impressas, isto é as que não se debateram. Foram muito interessantes, muito educativas, muito instrutivas. Pensamos fazê-lo todos os anos. Pois existe um foro lá por Davos, onde se reúnem não sei quantos representantes de multinacionais e todos os ricos deste mundo; a nossa pequena ilha poderia ser um modesto ponto onde nos reunamos os que não somos donos de multinacionais nem coisas parecidas. Mas vamos fazer o evento todos os anos, a partir da experiência que tivemos.
Eu devia encerrar aquela reunião. Tínhamos dito: Olhem, não haverá nem uma viola quando comece a reunião, porque os comícios sempre começam, como vocês sabem, com uma viola, um coro...
Ah! bom aqui esteve o coro, muito bem, e muito bom (Risos). Mas lhes disse: Desde o momento em que começar a reunião, no minuto exacto, começamos a discutir a primeira exposição, e assim foi os cinco dias, de manhã, de tarde e de noite.
Deram-me a tarefa de encerrar aquele encontro, e falei-lhes, para encerrar o acto, era meia noite. Se vocês mo permitem, e são uns minutos, porque foi muito breve (Risos), gostaria hoje repetir aqui o que expressei, porque em certa forma, muito sucinta, recolhe a essência de muitas das coisas que lhes disse a vocês:
"Estimados delegados, observadores e convidados,
"Já que me fazem esta honra, não vou fazer um discurso; limitar-me-ei a fazer uma exposição (Aplausos). Vou fazê-la em linguagem cabográfica e será muito mais um diálogo comigo mesmo.
Mês de Julho. Encontro de Economistas latino-americanos e caribenhos. Tema: grave crise econômica mundial à vista. Necessidade de convocar uma reunião internacional. Ponto central: a crise económica e a globalização neoliberal.
"Debate amplo.
"Todas as escolas.
"Confrontar argumentos.
"Trabalhou-se com esse objectivo.
"Redução máxima possível de gastos para todos.
"Trabalhar de manhã, de tarde e de noite.
"Excepcional seriedade e disciplina reinou nestes cinco dias.
"Todos falamos com absoluta liberdade. Conseguimos isso. Estamos agradecidos.
"Aprendemos muito ouvindo os senhores.
"Grande variedade e diversidade de ideias. Extraordinária exibição de espírito de estudo, talento, clareza e beleza de expressão;
"Todos temos convicções.
"Todos podemos influir uns nos outros.
"Finalmente, todos tiraremos conclusões semelhantes.
"Minhas convicções mais profundas: a incrível e inédita globalização que nos ocupa, é um produto do desenvolvimento histórico, um fruto da civilização humana; foi atingida num brevíssimo período de não mais de três mil anos na longa vida de nossos ancestrais no planeta. Era já uma espécie completamente evoluída. O homem atual não é mais inteligente que Péricles, Platão ou Aristóteles, apesar de que ainda não sabemos se suficientemente inteligente para resolver os complexíssimos problemas de hoje. Estamos apostando em que pode conseguí-lo. Sobre isso tratou nossa reunião.
"Uma pergunta: Trata-se de um processo reversível? Minha resposta, a que dou a mim mesmo, é: não.
"Que tipo de globalização temos hoje? Uma globalização neoliberal; assim a chamamos muitos de nós. É sustentável? Não. Poderá subsistir por muito tempo? Absolutamente não. Questão de séculos? Categoricamente não. Durará só décadas? Sim, só décadas. Porém mais cedo no que tarde terá que deixar de existir.
"Suponho-me, por acaso, uma espécie de profeta ou adivinho? Não. Sei muito de economia? Não. Quase absolutamente nada. Para afirmar o que disse basta saber somar, diminuir, multiplicar e dividir. Isso as crianças aprendem no ensino primário.
"Como vai acontecer a transição? Não sabemos. Através de amplas revoluções violentas ou de grandes guerras? Parece improvável, irracional e suicida. Através de crises profundas e catastróficas? Infelizmente é o mais provável, quase, quase inevitável e acontecerá por muitas vias e diferentes formas de luta.
"Que tipo de globalização será? Não poderia ser outra que solidária, socialista, comunista, ou como queiram chamá-la" (Aplausos).
"A natureza dispõe de muito tempo e com ela, a espécie humana, para sobreviver à ausência de uma mudança semelhante? De muito pouco. Quem serão os criadores desse novo mundo? Os homens e mulheres que povoam nosso planeta.
"Quais serão as armas essenciais? As idéias; as consciências. Quem as semearão, as cultivarão e as tornarão invencíveis? Os senhores. Trata-se de uma utopia, de um sonho mais entre outros? Não, porque é objectivamente inevitável e não existe alternativa. Já se sonhou não faz tanto tempo, só que talvez prematuramente. Como disse o mais iluminado dos filhos desta Ilha, José Martí: "Os sonhos de hoje serão as realidades de amanhã".
Concluí a minha exposição.
"Muito obrigado" (Aplausos prolongados)
Perdão pelo abuso que tenho cometido com vocês e lhes prometo que de aqui a 40 anos quando me convidarem mais uma vez, serei mais breve (Aplausos e exclamações de : "Fidel, Fidel, Fidel!").
Sorte para vocês que não incluí o famoso folheto. Sabem o que era? O documento do Sínodo de Roma, publicado no México (Do público lhe dizem qualquer coisa). Não vou lê-lo; mas, a maoir parte do que sublinhei lendo esta exortação apostólica coincidia em muitas coisas com as ideias que exprimi aqui. Pensava utilizá-lo como prova de que muito do que se pensa hoje no mundo sobre o desastroso sistema imperante não vem só de fontes de esquerda, não vem só de fontes políticas. Argumentos, expressões ou afirmações condenando a pobreza, as injustiças, as desigualdades, o neoliberalismo, os esbanjamentos das sociedades de consumo e outras muitas calamidades sociais e humanas engendradas pela actual ordem económica imposta ao mundo, surgem também de instituições que não tem nada a ver com o marxismo, como a Igreja Católica Romana. Da mesma maneira pensam muitas igrejas cristãs.
Talvez o melhor de tudo, teria sido que eu tivesse chegado com este documento, lesse o que tinha sublinhado, e vocês poderiam ter ido embora quatro horas e meia antes (Risos).
Muito obrigado.
(Ovação)