Entrevistas

Entrevista concedida pelo Presidente da República de Cuba, Comandante-em-Chefe Fidel Castro Ruz, ao jornal Clarín. Buenos Aires, Argentina

Jornalista.- Senhor Presidente, podemos entrar no tema, se lhe parecer.
 
Fidel Castro.- Sim, parece que o tempo nos obriga.
 
Jornalista.- É, claro.
 
Parece-me que é um bom lugar para começar:
 
Estamos em uma etapa de reformulação do sistema internacional, não necessariamente pela lei, mas pela força, como acabamos de ver.
 
Cuba — você sempre lembra isso, em todo o momento — leva várias décadas de um sistema de bloqueio que constitui um impedimento maior para estabelecer um sistema de segurança para a experiência política na ilha, para a vida da ilha. Você acha que essa situação, a partir dessa reformulação que encarna George Bush, essa tentativa de reformulação é mais precária, é mais grave? Como você vê isso?
 
Fidel Castro.- Depende das possibilidades que essa reformulação tiver, porém à tua pergunta posso responder que sim, que essa situação é mais perigosa e mais grave. E não só para Cuba, mas quem sabe para quantos outros também, porque seria preciso despejar aquela equação quando ele se refere a que 60 ou mais países podem ser atacados; para esse conceito "ou mais" é preciso inventar uma equação. Quando alguns dias depois daquilo houve uma iniciativa nos Estados Unidos propondo atacar Holanda, se o Tribunal Penal Internacional sancionava algum norte-americano, constatou-se que, ao que parece, esse xis resulta bastante amplo. Não sei se alguém foge desse "ou mais".
 
Jornalista.- Presidente, mas esta reformulação em particular, depende mais do emprego da força do que da vigência da lei. Quando você fala — e eu julgo que é bem assim — que há uma maior precariedade para toda a região, a gente tem que pensar que na região, diferentemente da década anterior, estão surgindo governos, e quando não são governos, propostas políticas, que falam de um cansaço latino-americano com a injustiça; certa fadiga — chame-o com o modelo neoliberal, o consenso de Washington, o nome importa pouco —; há uma fadiga de injustiça na região. E isto, naturalmente nos leva a pensar — a história o ensina — é que, quando se originam esses processos, há uma maior possibilidade de confrontação com os Estados Unidos.
 
Como vê o futuro, não já de Cuba, mas da região? Estou falando de Chávez, na Venezuela; Lula, no Brasil, o que significa.
 
Fidel Castro.- Há perigo não só na região, é mundial; mas vejo que você quer se referir à região.
 
Jornalista.- Sim.
 
Fidel Castro.- Sim, há um perigo para a região. Os perigos são a partir de riscos de agressão ou riscos de que a região seja devorada: riscos de submissão, de apropriação dos recursos, da imposição de um sistema que está realmente em crise; é a globalização neoliberal, do qual, tudo o que está acontecendo são expressões de sua crise.
 
Cuba ocupa o primeiro lugar; tem a honra de correr o maior risco.
 
Jornalista.- Talvez, Presidente, ainda que o risco de Cuba é grande, o maior risco para a região é a Colômbia. Na Colômbia, a gente pode pensar agora em um convite, feito a partir do próprio governo colombiano, para militarizar hemisfericamente a longa luta de décadas, e será muito difícil para os países, se se produzir essa convocatória, se os Estados Unidos a estimula, de militarizar em termos do hemisfério; para colocá-lo em termos claros, de uma intervenção militar hemisférica na Colômbia.
 
Fidel Castro.- Sim, mas isso vem desde antes desta administração. Como também antes desta administração se produziu um fato como o de Kosovo.
 
Jornalista.- Claro, a intervenção da NATO.
 
Fidel Castro.- E se falava do novo conceito estratégico da NATO. Um dia no Brasil, em 28 de junho de 1999, quando se reuniram os Chefes de Estado europeus com os da América Latina e o Caribe, fiz algumas perguntas sobre esse novo conceito estratégico. Uma delas: Desejaríamos que nos esclarecessem se a América Latina e o Caribe estão ou não abrangidos dentro da periferia euroatlântica definida pela NATO.
 
Outra pergunta que tem a ver muito com o caso foi: A União Européia, depois de muitos debates, apoiou uma declaração dessa Reunião de Cúpula que diz: essa associação estratégica se sustenta no pleno respeito ao direito internacional e nos propósitos e princípios presentes na Carta das Nações Unidas, os princípios de não intervenção, o respeito à soberania, a igualdade entre os Estados e a autodeterminação. Significa isso que os Estados Unidos se comprometem também a respeitar os princípios que aparecem nesse acordo dos seus aliados? Qual será a atitude da Europa se os Estados Unidos decidirem, por sua própria conta, lançar bombas e mísseis sob qualquer pretexto contra qualquer um dos países da América Latina e do Caribe cá reunidos? Não vou dizer que a pergunta era provocativa, mas sim muito franca.
 
O Chefe de Estado do Brasil, Fernando Henrique Cardoso, que estava presidindo a sessão, disse que essas perguntas eram muito importantes e sugeria que na reunião privada que vinha a seguir, se lhes desse resposta. O chanceler alemão, Schroeder, e demais lideranças européias, concordaram.
 
Realizou-se a reunião privada e eu esperava que chegasse o turno de discutir o tema, e falavam de uma coisa, de outra, de outra, passou o tempo e ninguém falou do tema. Eu não quis ficar impertinente, exigindo a resposta. O importante não era a resposta, mas a pergunta que ali ficou colocada. Sabia que nenhum dos europeus podia dizer nem uma palavra. O que aconteceu nos anos subsequentes o explica tudo. E hoje a correlação de forças a favor dos Estados Unidos é muito maior.
 
Eu próprio fiz recentemente uma pergunta ao senhor chefe do governo espanhol relativa a determinadas recomendações que ele fez no meio da guerra de Kosovo, uma coisa muito séria; porém não há resposta, e talvez porque não possa havê-la. Cheguei a uma conclusão, e um pouco brincando eu disse: "Eu acuso, portanto, não existo". Porque sou mais importante para algumas coisas, sobretudo quando há que passar culpas, e então, quando faço uma pergunta que deve ser respondida, a resposta é o silêncio total.
 
Nisso que você fala em concreto, houve mudanças, isto é, naquela política que se insinuava como uma concepção de domínio em que participam a superpotência e seus aliados velhos, e alguns novos, que são mais perigosos, porque os novos querem fazer méritos rapidamente. Então a situação é diferente de quando fiz a pergunta sobre a nova política estratégica da NATO. São idéias que vêm dantes, porém antes eram apoiadas com determinados argumentos ou pretextos. Desta vez o governo dos Estados Unidos não precisa já dos argumentos nem dos pretextos.
 
Aquela situação, mais ou menos, se enquadrava dentro das Nações Unidas e dos privilégios do Conselho de Segurança; esta já ignora as Nações Unidas, ignora o Conselho de Segurança, ignora a Europa, ignora a NATO, ignora todo o mundo. Sua nova concepção é absolutamente unilateral.
 
Jornalista.- Presidente, deixe-me colocar isto em termos gráficos.
 
Desde a crise dos mísseis até ao presente, até esta administração, tudo isso que você falou pode ter-se estado gestando, mas desde essa própria crise até o presente resulta cada vez mais difícil pensar em uma ação militar norte-americana direta sobre Cuba, como aconteceu na altura com os bloqueios navais. Hoje tem-se tornado mais possível?
 
Fidel Castro.- Sim, tem-se tornado mais possível o erro.
 
A lógica indicaria que não fizessem isso; mas nós não temos que nos cingir à lógica, porque a lógica não existe muito, nem também não existe a lei internacional.
 
Naquilo houve um risco muito iminente em um tempo determinado, em um número de dias; agora o risco é prolongado.
 
Jornalista.- Se me permitir: há 30 anos a fadiga de injustiça que mencionava Oscar também estava na América do Sul; tínhamo-la em governos, Argentina, Chile, Uruguai. Essas experiências terminaram tragicamente para o nosso país. Porquê hoje poderia ser diferente?
 
Fidel Castro.- A quê experiência você se refere?
 
Jornalista.-
Aos anos setenta. O caso de Salvador Allende no Chile, Cámpora-Perón na Argentina. Tina toda uma onda contestatária latino-americana, que terminou em ditaduras (Vozes superpostas).
 
Fidel Castro.- Em tiranias sangrentas; foram coisas terríveis as que aconteceram; sei lá, parecem-me de uma fantasia insólita.
 
Jornalista.- E hoje temos um reverdecer da Argentina.
 
Fidel Castro.- Bom, bom, porém a época é diferente.
 
Eu diria que este é o melhor momento da América Latina, a diferença daquele outro.
 
Jornalista.- Este é o melhor momento?
 
Fidel Castro.- Sim, do meu ponto de vista, o melhor momento.
 
Jornalista.- Porquê?
 
Fidel Castro.- Explicar-lhe-ei.
 
Antes eram países isolados. No Chile ganhou a esquerda. A primeira coisa foi um plano golpista para evitar que tomasse posse. O plano fracassou. Allende tomou posse. Agiu com discrição. Eu conheci ele muito bem; não era um extremista. Porém, tudo foi organizado desde o primeiro momento para derrubá-lo: preparação, criação de condições. A isso se acrescentavam problemas econômicos reais e os provocados. Qualquer governo nessas circunstâncias encontra grandes dilemas: um, velhas demandas e ansiedades da gente por melhorar o antes possível, e, por outro lado, velhos e poderosos interesses que não são fáceis de ultrapassar, algo que precisa de um processo cauteloso e de tempo. Os que mais têm sofrido ficam impacientes; e aqueles que não desejam tais mudanças trabalham para produzir o rápido desgaste e o derrubamento dos governos. Não é um segredo que aquilo resultava uma tarefa difícil.
 
Aquele momento argentino mencionado foi também muito importante, mas com riscos inerentes de caráter interno; é claro que, em um país de muitos recursos — é bom dissê-lo, vocês não ficarão zangados se o dizemos —, enormes recursos de todo o tipo, alimentares, energéticos e inclusive, industriais.
 
Jorn m-se produtores até de leite. O vinho — sem desprezar os outros — tem qualidade; há produtividade e variedade. Mas, principalmente, desenvolveram os produtos florestais e os marítimos, que constituem importantes fontes de receitas. Continuaram desenvolvendo também os minérios.
 
Allende não dispunha desses recursos: muitas necessidades, grandes demandas e bloqueios diretos ou indiretos; suspensão de créditos.
 
A vulnerabilidade dos nossos países... Bom, de todos menos do nosso. Sinto vergonha dizê-lo assim, mas têm que depender do que está estabelecido, do Fundo Monetário, dos créditos e condições que ele impõe sumamente difíceis.
 
Isto não quer dizer que não tenhamos problemas econômicos; digo que não temos as travas insuperáveis que tem o resto da América Latina.
 
Jornalista.- Não são os mesmos.
 
Fidel Castro.- Então, aquela rebelião que vocês mencionaram era mais isolada. Embora existia a dívida, que já era de 300 bilhões naquela época, quase um terço da atual, Allende ganha as eleições em 1970.
 
Jornalista.-
Sim, Allende assumiu a finais de 1970.
 
Fidel Castro.- A dívida latino-americana era ainda menor, porém aí vai crescendo, continua crescendo, e já em 1985 se elevava aproximadamente a 300 bilhões.
 
Os fatores que hoje determinam a intranqüilidade e a inconformidade estão muito mais generalizados no hemisfério. Já não há oásis no hemisfério sul, no Caribe, na América Central, no México. Ela assume um caráter mundial para os nossos países. A rebelião é muito mais generalizada. Ainda não surgira a atual etapa de globalização neoliberal, que é terrível; de privatização forçosa — poderíamos dizer — de todos os recursos, medidas muito rigorosas que condenam as moedas dos países latino-americanos a fugir custe o que custar. O dever do dinheiro é fugir. Resulta lógico, porque, limpo ou sujo, nenhuma moeda latino-americana garante a estabilidade do seu valor; não a garante no absoluto. Até num país que manteve sua moeda com um valor paritário respeito do dólar durante breves anos, como, por exemplo, o real — e não sei qual dos dois vimos primeiro, se o peso argentino ou o real brasileiro; vocês se lembram? Coloquemos o peso diante do real. Entrou em crise primeiro o real do que o peso. Ambos os dois tinham criado ilusões num momento em que a gente estava aborrecida da inflação e queria uma moeda estável, porque a inflação colossal e incontrolável que se originou era um verdadeiro pesadelo. Sempre tem existido uma inflação progressiva, é a tendência histórica. Um dólar de hoje deve valer mais o menos dez centavos de um dólar de há 40 anos.
 
Jornalista.- Sim, em 1971 quando Nixon o declarou não conversível.
 
Fidel Castro.- Antes, com dois centavos se podiam comprar coisas; até com um centavo de dólar, não é? Agora serve só para a propaganda: $10,99 em vez de $11, ou $ 99,99 em vez de $100; para criar o efeito psicológico de uma coisa mais barata.
 
Que moeda é estável? O ouro foi moeda, como o cacau foi moeda para os astecas; porém tinham um valor per se, um valor em si, o ouro e o cacau. E sabe-se lá o dinheiro que tem gastado o mundo produzindo esse instrumento de câmbio que era o ouro.
 
Acho que a idéia de outros instrumentos de câmbio, de um símbolo do dinheiro, é boa; o que acontece é que o símbolo tornou-se numa coisa que se imprime a discrição, um símbolo do qual se tem abusado extraordinariamente, incluídos os norte-americanos, porque são dos que mais papel moeda têm impresso, suprimindo sua conversão em ouro como você apontou.
 
Ora bom, agora talvez me haja estendido demais, mas queria responder-lhe que as circunstâncias são bem diferentes, e por todos esses fatores, e porque o dinheiro foge e tem que fugir, não tem alternativa; se a você lhe impõem que não pode haver controle de câmbio, tal mecanismo resulta mortífero. Qualquer instabilidade, qualquer problema interno, qualquer problema econômico, baixa dos preços, déficit nas exportações, déficit no orçamento, vai criando todas as condições, e o dinheiro tende a fugir mais rápido. As medidas aconselhadas para contrarrestá-lo, aliás, impostas pela atual ordem econômica: suba os juros, para que não fuja; sobem-no para 40%, para 50%, e não há país que se possa sustentar com um empréstimo onde tenha que pagar 50% de juros para capital de trabalho, investimento, ampliação. Não há.
 
Quando aconteceu a crise no Sudeste Asiático, por exemplo, Mahathir, que estabeleceu um controle do câmbio, nesse momento os empréstimos tinham 14% de juros, baixou-os para 7% para sair da contração, para que as pessoas trabalhassem; criar empregos e pudesse funcionar a economia. Nessas condições, a América Latina tem uma situação terrível.
 
Reparem, quando eu vim a vez anterior –se me permitem apanho mais um minuto...
 
Jornalista.- Tudo o que necessite.
 
Fidel Castro.- Sim, o que não quero é brigar com aqueles que esperam por mim.
 
Jornalista.- Lá fora não correm, não somos nós...
 
Fidel Castro.- Por mim, com muito gosto, eu cá estaria três horas.
 
Quando vim a Argentina pela primeira vez, há 44 anos, a dívida da América Latina era de 5 bilhões, e me passou pela mente — sempre à gente lhe passa alguma coisa pela cabeça melhor ou pior — o que coloquei: América Latina tem que se desenvolver, a pobreza é muito grande. Falava-se do Plano Marshall como exemplo de ajuda de um país que tem mais recursos para o resto, e eu disse: "América Latina precisa de um Plano Marshall", e menciono a cifra de 20 bilhões de dólares para o desenvolvimento econômico e social da América Latina. Não sei se fiz bem ou fiz mal; poderia sentir remorso; mas acho que a colocação foi correta. Estava Rubotton, se mal não me lembro do nome, como representante norte-americano.
 
E quem ia dizer que foi o mesmo que fez o Kennedy depois.
 
Jornalista.- Depois, na Aliança para o Progresso.
 
Fidel Castro.- Até reforma agrária.
 
A primeira a fizemos nós em maio de 1959. A Jacobo Arbenz, por fazer uma reforma agrária lhe enviaram uma expedição; o que veio depois foram 200 000 mortos, foi o que ficou daquilo; dentre eles, 100 000 desaparecidos, sem exagero. Isso, de acordo a relatórios e estudos que fizeram pessoas muito sérias, algumas das quais morreram por escrever sobre essas cifras espantosas.
 
A dívida em 1985 era de 300 bilhões. Nós fizemos uma batalha contra essa dívida, porque sabiamos qual seria o futuro. Sempre se conseguiu alguma coisa, porque eles se assustaram um pouco e inventaram alguma formulinha, os bônus Brady, etc., etc.; mas agora é preciso pagar os bônus Brady.
 
A dívida agora é de 800 bilhões. O Banco Mundial já não faz empréstimos brandos, mas se dedica a fazer operações de salvamento, e o Fundo Monetário é cada vez mais rígido e não admite nada. E os primeiros que pagam o preço, cada vez que há uma redução no orçamento, são as escolas, os hospitais, a previdência social. Isso cria muito descontentamento.
 
Fizemos muitas reuniões com professores. Milhares de professores e educadores visitam Cuba, um pouco para ver a experiência; e pelo que padecem é pela falta de orçamento: que não há orçamento para lápis, para isto, para aquilo. E os médicos mesma coisa; todas as categorias. Os serviços sociais sempre são os prejudicados.
 
Além disso, quando triunfa a Revolução, em 1959, eu estou falando nos 20 bilhões, 20 bilhões que valiam muito mais, talvez sejam agora o equivalente de ter pedido 80 bilhões, fazendo um cálculo com extrema cautela.
 
A dívida atual é pelo menos de 80 bilhões. A parte do orçamento que se usa para o pagamento da dívida nalguns lugares ultrapassa 50%. Não há país que resista isso.
 
Nessas circunstâncias a fuga de capitais é obrigatória, porque se você tem 100 000 dólares em ouro os pode enterrar, guardar; mas se os tiver em papel moeda nacional os troca por dólares e os leva.
 
Como existe forçosamente o livre câmbio, é o "Abre-te, Sésamo", as portas ficam abertas e a gente se leva o dinheiro, porque há uma moeda regularmente estável que é o dólar, pelo poderio da sua economia, pelos privilégios de Bretton Woods, onde se comprometeram, além disso, a que essa moeda teria um apoio em ouro.
 
Aquando da guerra no Vietnã, que custou 500 bilhões sem impostos, criaram-se tremendos problemas e Nixon decide unilateralmente suspender a conversibilidade do dólar, o que tem originado um problema terrível com a especulação monetária, de modo que cada dia se realizam operações especulativas por milhões de milhões de dólares nessa atividade. Já não tem moeda segura.
 
Inglaterra, que foi a rainha das finanças, tinha a libra esterlina que foi desvalorizada numa operação especulativa.
 
Jornalista.- Presidente, por tudo isso que você descreve, que são condições adversas, porquê você acha que é um bom momento para América Latina?
 
Fidel Castro.- Por esse protesto de que vocês falaram, que eu disse que aconteceu em condições diferentes, e era relativamente isolado, e hoje se constata um protesto generalizado, que abrange todos os países da América Latina. Criou-se uma situação que eu qualifico de insustentável e é, além disso, insuportável. Criou as condições objetivas que explicam uma série de acontecimentos políticos.
 
Você pode constatar isso em qualquer lugar.
 
Jornalista.- Agora, Presidente, você acha que essas condições de rebelião ou de impaciência, como você diz, são sustentáveis no tempo, ou América Latina corre o risco — e há exemplos, a Colômbia — de democracias menos democráticas, ou democracias tuteladas, ou giros autoritários? Não corre esse risco a América Latina?
 
Fidel Castro.- Olha, essa é uma pergunta complexa. Mas eu acho que a violência não parece ser o curso inevitável. Tudo tem mudado muito; há fenômenos absolutamente novos.
 
Na Colômbia concretamente existe um velho problema de violência. Há dois ou três fenômenos novos no hemisfério, um deles: a nenhum militar no seu pleno juízo lhe passa pela mente hoje um golpe de Estado tradicional para resolver os problemas. Foi a fórmula a que sempre recorreu o imperialismo. Também há uma mudança nas consciências. Os militares sabem que existe uma situação social tremendamente explosiva. Eu não disse que naquela época dos 20 bilhões solicitados em Buenos Aires como necessidade do desenvolvimento econômico e social, a população era de menos de 250 milhões de habitantes; hoje alcança 524 milhões; cresceu extraordinariamente. O emprego que cresce não é o emprego formal; cresce fundamentalmente o emprego informal, cada um lutando pela vida como pode. Isso é bem conhecido.
 
Hoje, uma senhora, à entrada de um parque muito belo, estava reclamando-lhe uma vaga, ou seja, um lugar ali à autoridade que me acompanhava, e dizia-o quase cm dor, "para vender alguma coisa".
 
Só 20% dos novos empregos é de caráter formal. A própria indústria moderna, com as novas tecnologias, em vez de incrementar o número de trabalhadores, os reduz.
 
Nós em Cuba temos o caso de uma fábrica que tinha 300 trabalhadores e hoje tem 50, para produzir, por exemplo, tecido de mosquiteiro, que é usado para tapar o tabaco; o dobro da produção com a sexta parte dos trabalhadores. Hoje você visita uma usina termelétrica de ciclo combinado, que trabalha a gás, e em lugar de centenas de trabalhadores laborando com carvão ou petróleo nas termelétricas tradicionais, você não vê o operário, você vê engenheiros, 15 ou 20 engenheiros trabalhando no ar condicionado apertando uns botões.
 
Muitas vezes pus-me a pensar. Vamos supor que a ALCA trouxesse para qualquer país latino-americano um enorme desenvolvimento industrial. Suponhamos que traz o desenvolvimento da Alemanha. Não gosto de nomear países, porque sempre se corre o risco de ser acusado de ingerência, de tal maneira que quase não se pode abordar nenhum tema do ponto de vista prático ou teórico. Não tenho outra alternativa neste caso que usar um exemplo:
 
Suponhamos que um país grande e com recursos, como Argentina, chegue a atingir o desenvolvimento atual da Alemanha; não teria resolvido o problema do desemprego que foi um dos ingredientes da crise. Sendo o país mais industrializado da Europa, a tragédia alemã é o desemprego que atinge 10% da população ativa. Em nosso país estamos a ponto de atingir o pleno emprego. Partindo do critério de que o crescimento do emprego estará nos serviços, chegamos à idéia de converter o estudo numa forma de emprego, que avança com grande satisfação por parte da população. Há com certeza outras fórmulas que não são necessariamente fórmulas cubanas. Nós, perante a necessidade, vimo-nos obrigados a inventar.
 
Bom, eu sou anti-ALCA, isso é bem conhecido. E seria necessário ter uma fantasia semelhante à loucura para pensar que a ALCA traria a industrialização e não a ruína da América Latina.
 
Jornalista.- Presidente, você diz que o caminho não parece ser a violência.
 
Fidel Castro.- Digo que não vejo a violência como o grande fantasma. Refiro-me à violência armada. Observo as massas, e as massas estão começando a fazer coisas que antes não faziam.
 
Posso colocar um exemplo: Irã, alguns anos atrás. O Sha de Irã era o gendarme dos Estados Unidos na região e era o país mais poderoso, tinha as armas mais modernas, além disso, um país riquíssimo; contudo, o povo chiita, sob a direção de Khomeini, sem um arma, nem um disparo, derrubou o poderoso Sha.
 
Quando se originou a crise econômica no Sudeste Asiático, tinha outro senhor poderoso com um exército enorme e bem armado, que se chamava Suharto. Na altura era muito tolerado porque tinha morto centenas de milhares de pessoas de esquerda. Isso o sabe todo o mundo; foram 800 000, um milhão ou 1 200 000, e em um piscar de olhos as massas o derrubaram.
 
Não quero ir muito longe mas também não quero estar perto demais. Talvez se vocês pensarem um pouco, houve mudanças neste mesmo país, sem que tenham surgido da violência armada; e já não se trata da Indonésia ou do Irã. Importantes avanços políticos sem violência armada; digo-o com o maior respeito por este país; vejo-o como um exemplo, se não me proíbem pensar e alguém fica zangado e diz que estou fazendo ingerência nos assuntos internos. Analiso-o simplesmente do ponto de vista histórico e teórico, para responder a pergunta.
 
Também o acontecido no Equador — não é preciso ir mais longe —, um dia a população indígena penetrou no Palácio e determinou uma mudança de governo, e os indígenas não tinham nem um arma, igual que os militares que se aderiram. Aquele que pense que na situação atual os problemas do hemisfério poderiam ser resolvidos mediante o uso das armas, estaria razoando em termos pré-históricos.
 
Jornalista.- Você fala de esquerda e de direita?
 
Fidel Castro.- Estou pensando em todos, e incluo as camadas médias perante uma situação que já resulta insustentável. As camadas médias estão desempenhando um papel muito importante quando são criadas determinadas situações nacionais e internacionais. As camadas médias são perigosas para a atual ordem dominante, porque possuem conhecimentos.
 
Muitas vezes constatei que a gente mais pobre está habituada ao sofrimento, ao engano e a opressão; mas quando a um homem das camadas médias lhe confiscam os fundos, o problema é muito sério. Eu não tenho que falar-lhes a vocês disso (Risos). Não quero mencionar nomes, mas há fenômenos novos e, aliás, são mundiais, não são apenas locais. Também há outras coisas novas, há conhecimentos novos. Há muita incultura por um lado, mas também das universidades saiu muita gente — é o que mais tem saído —, que possuem conhecimentos. É terrível não possuir os conhecimentos, uma coisa que é fundamental. Nós o vemos na nossa própria Revolução: hoje a nossa população é outra, porque antes se tratava de um país de analfabetos, 30%, mas se você soma os funcionais e os totais, era 90%, porque em Cuba havia apenas 400 000 pessoas que tinham sexta série, numa população de quase 7 milhões, , e que sexta série! É terrível quando as massas são ignorantes. Agora as massas, em número crescente, dispõem de meios para poder se informar. Verdade é que continuam existindo 860 milhões de analfabetos no mundo porque as Nações Unidas, a UNESCO, e os governos não se ocupam disso; porque resulta realmente fácil e possível liqüidar o analfabetismo.
 
Jornalista.- O conhecimento é uma outra forma de opressão.
 
Fidel Castro.- O conhecimento está hoje, fundamentalmente, nas mãos das camadas médias, que são as que em Cuba chamamos de trabalhadores intelectuais, estreitamente ligados à Revolução, e que no resto do mundo tomam cada vez mais consciência de que a ordem estabelecida conduz o mundo para a catástrofe.
 
Uma outra coisa: a Internet. Apareceu a Internet e o valor das grandes redes de televisão tem ido diminuindo. Os grandes jornais que antes estavam monopolizados vão diminuindo sua influência monopólica, porque ao surgir e se massificar a Internet, que está nas mãos de muitas pessoas das camadas médias, na verdade, hoje são enormes as possibilidades de transmitir outras mensagens.
 
Seattle, quem o organizaram? Organizaram-no pessoas das camadas médias: canadenses, norte-americanos, latino-americanos; organizaram-se e deram ali uma batalha impressionante. Não foi bélica. O que parecia bélico eram as proteções, os gases, os métodos repressivos contra eles. E em Quebec? Bom, as lideranças políticas estiveram encerradas em uma fortaleza, mas os gases lacrimogêneos caíram dentro, mais além dos alambrados bélicos que os protegiam.
 
Se vocês se lembram da última reunião de Davos e viram algumas fotos da Primeira Guerra Mundial, ambas linhas de fortificações eram parecidas: as trincheiras eram parecidas às dos campos de batalha de Verdún e de Marne, deslocados à pacífica Suíça. Bom, mudaram-se para Nova Iorque e no ano passado, depois do 11 de setembro, sentiam-se mais seguros em Nova Iorque do que na Suíça; porém em Nova Iorque também não estariam seguros de encontrar paz, porque os organizadores das manifestações fizeram-nas tanto em Washington contra o Banco Mundial, contra o Fundo Monetário, quanto em Gênova contra a Reunião dos Oito. Devem estar a ponto — e a isso eu disse antes que são de outras características.
 
Repare no caso de Kosovo, posso-lhe garantir uma coisa que conheço muito bem. A ofensiva bélica foi planejada para sete dias e fica resolvida no dia 79, quando já havia que entrar por terra, e o exército iugoslavo estava intato apesar dos milhares de bombas lançadas. Eles têm uma velha experiência em luta irregular, enfrentaram-se aos hitlerianos, prestaram-lhe um enorme favor à União Soviética; retardaram o ataque algumas semanas que puderam ser decisivas, e resistiram. Os nazistas tinham 30 ou 40 divisões alemãs ocupadas na Iugoslávia quando estavam precisando delas lá em Stalingrado ou frente à contra-ofensiva. Têm todas essa experiência desenvolvida, modernizada. E como fizeram para que o exército estivesse praticamente intato?; já a invasão tinha que ser por terra, e por terra é já uma outra coisa, quando se quer fazer guerra sem baixas.
 
Lembro-me que estivemos lutando contra os sul-africanos, refiro-me ao regime do apartheid. Para eles, se morria a população indígena, que a recrutavam em Namíbia ou em Angola, não tinha problemas; mas quando morria um branco, dois, três, aquilo era o caos. Então vai-se desenvolvendo a mentalidade de fazer a guerra sem baixas, e isso numa guerra irregular é bem difícil.
 
Jornalista.- Se me permite, voltar aos nossos países.
 
Fidel Castro.- Correto. Desculpem, mas como falávamos nisso.
 
Jornalista.- Não, o que queria é dizer isso.
 
Fidel Castro.- Isto é, como falaram Colômbia, se ia acontecer a mesma coisa.
 
No Brasil não vai acontecer como na Colômbia; os movimentos hoje são de greves, de massas, de mobilizações. E ninguém pensaria recorrer à violência armada para tomar o poder; os militares têm suficiente consciência. É uma época nova e de uma grande crise. E quem vai querer que lhe ofereçam uma grande crise? Os procedimentos para manter a ordem teriam que ser cada vez piores. E sabe-se que o pior já chegou no que tange à repressão, e já não é possível. Já há muitas formas em que as pessoas sabem de certas prerrogativas; já a Internet está por todas partes e as possibilidades que têm de transmitir uma mensagem é algo real. Digo-o por Cuba.
 
As possibilidades que hoje temos de transmitir mensagens, idéias, argumentos, não existiam há alguns anos atrás.
 
Jornalista.- Senhor, desejo lhe fazer uma pergunta, para que não corra o risco de entrar nos assuntos internos de outro país.
 
Fidel Castro.- No meu.
 
Jornalista.- No dia 1º de janeiro do próximo ano vocês vão fazer 45 anos da vitória da Revolução.
 
Fidel Castro.- Sim. Daquilo que parecia um triunfo da Revolução, porém era preciso organizar aquilo.
 
Jornalista.- Mas resultou que era um triunfo da Revolução.
 
Fidel Castro.- O derrubamento daquele regime e o começo de um governo por parte de gente bastante inexperiente que estava nisso.
 
Jornalista.- De toda a explanação que você forneceu sobre a nova perspectiva latino-americana, como imagina a transição em Cuba?
 
Fidel Castro.- A qual você se refere? Àquela que fizemos ou a uma nova?
 
Jornalista.- À nova.
 
Fidel Castro.- E para onde? Digam-me para onde?
 
Procurem um melhor modelo, e eu lhes juro que faria tudo o possível, começaria de novo a lutar outros 50 anos pelo novo modelo (Risos).
 
Jornalista.- Tinha alguém aqui que disse...
 
Jornalista.- Senhor, se me permite esclarecer.
 
Quando se trata de uma figura histórica como você, os que pensam numa etapa posterior a essa figura histórica são os outros.
 
Nós lhe trazemos isto: Como imagina o futuro de Cuba quando Castro não esteja no cenário?
 
Fidel Castro.-
Essa pergunta sa formulam muitos, e eu também ma faço.
 
Jornalista.- Por isso.
 
Fidel Castro.- Sim, mas o erro é acreditar que Castro é tudo, porque você diz: Castro faz isto... Castro tem ideado. Por exemplo, posso me atribuir, com vergonha — quero dizer, porque não quero estar exaltando coisas pessoais nem muito menos —, a idéia de como resolver o problema de Batista quando acontece o golpe de Estado no dia 10 de março, e não tínhamos nem um centavo, nem um arma, e tinha uma força tamanha diante de nós, e, além disso, ninguém se mexia conosco, porque o governo derrubado tinha sim muitos recursos e o apoio de alguns oficiais do exército. Decidimos que, apesar de tudo, o problema podia se resolver.
 
Não há muito mérito onde também há muito azar. Porque você me pode perguntar: Porquê você está aí? Bom, então digo: por uma questão de sorte, questão de azar, entre outras coisas.
 
Ora bom, há algumas idéias. A forma de resolver esse problema era bem difícil e também se correram grandes riscos pessoais; mas se pôde resolver.
 
Depois vieram outros, como a questão do bloqueio econômico durante 30 anos. Depois veio o período especial, que foi outro bloqueio dentro do rigoroso bloqueio que vínhamos sofrendo, e que foi endurecido. Pela sobrevivência da Revolução nessas condições, ninguém apostava um centavo.
 
Se se conhecesse bem uma informação real e verídica, poderiam fazer-nos todas as críticas que se desejassem fazer; mas poderiam perceber na verdade que, se nós fôssemos a classe de pessoas que pintam, não teríamos o apoio do povo, que tem sido fundamental, a níveis que eu acho que não têm precedentes; e não sobre uma base de fanatismo, porque não somos chauvinistas, não somos fundamentalistas, e o que fizemos foi educar nossa população num conceito de solidariedade interna e externa. Se é externa a chamaremos de internacionalismo.
 
Centenas de milhares de cubanos cumpriram missões internacionalistas. Falei daquela luta contra África do Sul em Angola. Esse país da África está a mais distância de Cuba que Moscovo de Havana, o que acontece é que a rota vai pelo Equador; se você olha num mapa parece que aquilo está perto. Há 14 horas de Havana até Luanda, uma distância de vôo superior em mais de uma hora do que a distância entre Havana e Moscovo.
 
Levamos a cabo uma luta dura a mais de 14 horas, e houve alguns combates na fronteira com Namíbia, ainda mais distante. Cuba é um país pequeno. E quero que saiba que isso o fizemos com os nossos recursos. Foram os nossos barcos mercantes, visto que já contávamos com uma frota mercante; não acreditem que um barco soviético levou algum batalhão até ali.
 
Quer dizer que centenas de milhares, mais de meio milhão de compatriotas nossos têm cumprido, de uma forma ou doutra, uma missão internacionalista, porque os médicos têm sido dezenas de milhares; também construtores e professores, lá onde podiam ir. Em Nicarágua estiveram 2 000 professores nas montanhas; e mataram alguns deles. Ofereceram-se 30 000 para escolher 1 000 professores. Tivemos que enviar 2 000, e quando alguns foram assassinados, ofereceram-se 100 000.
 
Se as pessoas não estão imbuídas de uma idéia, às vezes em vez de idéias o que lhes inculcam é fanatismo, sentimentos chauvinistas, racismo, o que quiserem. Nosso país mantém-se na base das idéias, caso contrário, não teríamos podido lutar contra esse monstro. Ter-nos-ia corroído com seus meios de divulgação, seu bloqueio, sua exibição de riquezas.
 
Só digo isto: Podem nos fazer todas as críticas que quiserem e opinar sobre qualquer coisa, mas a questão é que o que se sabe de Cuba é uma informação que foi deformada durante muito tempo, aplicando toda uma técnica para deformar a verdade e vender mentiras.
 
Antes nós recebíamos os golpes e não tínhamos as munições com que ripostar; dentro se manteve a coesão e o apoio sobre a base das idéias, verdades e conceitos, pelo que conseguimos obter resultados. Uma mudança, por isso eu lhes perguntava para onde. Para o que vemos ao redor? Para o que vemos no mundo? Não quero enumerar as coisas que temos, pelas quais há razões éticas profundas e confiança. Sabem que nunca se lhes diz uma mentira, porque esse é um princípio sagrado; em nosso país a gente conhece as normas.
 
Por aí escrevem livros afirmando que em Cuba se tortura e se fazem vinte coisas. Sabemos, inclusive, quem os escrevem e até quem os mandaram escrever.
 
Contudo, nós temos dito: "Damo-lhes tudo, o pouco que temos, damo-lhes tudo àquele que possa demonstrar que em nosso país houve um só caso de tortura."
 
Livros desses há aos montes, porém nós resistimos. Já temos uma couraça para a defesa.
 
Jornalista.- Presidente, você falou da situação interna de seu país, fez alusão à formação através das idéias, do conhecimento, da liberdade; mas também aconteceu recentemente um episódio que teve uma grande repercussão internacional, acerca das execuções de dissidentes. Como se explicaria essa decisão de vocês?
 
Fidel Castro.-
Nós tivemos que aplicar medidas que eram legais e mediante julgamentos, não execuções extrajudiciárias. E fizemo-lo com muita dor. E sabíamos inclusive o custo; mas aí você tinha de escolher entre permitir a manobra que estão realizando para criar um conflito ou adotar as medidas para o evitar. Porque tem gente ali que querem provocar um conflito entre os Estados Unidos e Cuba, e que a discordância com Cuba se resolva da mesma forma em que aconteceu em Bagdad, e dezenas de milhares de bombas, de aviões, de mísseis, caíam sobre Cuba.
 
Jornalista.- Onde se estava gestando esse conflito?
 
Fidel Castro.- Lá, nos Estados Unidos.
 
Felipe Pérez.- Ele falou das notícias sobre "execução de dissidentes" em Cuba.
 
Fidel Castro.- Ah!, não reparei que ele usou essa palavra; obrigado, Felipe. Essa é uma das maiores confusões intencionalmente criadas: trata-se de coisas totalmente diferentes: os que começaram assaltar aviões e barcos são delinqüentes comuns, não têm absolutamente nada a ver com o problema dos chamados "dissidentes", e boto duas aspas grandes. Não desejo acrescentar muito mais.
 
Bom, outro elemento importante que estava assinalando: existe a provocação planejada. Com o Congresso em recesso, nomearam como vice-secretário para América Latina, um senhor que é um gângster total, que tem sua história. É um dos principais sócios da máfia cubano-americana extremista, que foi, aliás, para azar de todo o mundo, incluídos vocês e nós, autora de uma grande fraude eleitoral.
 
Não me explico como ali, nos Estados Unidos , se pode falar de democracia. Todo o mundo sabe exatamente os votos que lhe tiraram ao candidato opositor, o truque de alterar a ordem dos candidatos para induzir ao erro; os afro-americanos que não votaram simplesmente porque não os deixaram ir aos colégios eleitorais, roubando assim dezenas de milhares de votos que lhe permitiram a Bush ganhar a eleição fraudulenta por várias centenas deles, para além de que a população negra sofre ali restrições que uma coima, às vezes, pode chegar a ser causa de que você perca o direito ao voto.
 
Jornalista.- Você não mexe nas questões de outros países, menos um.
 
Fidel Castro.- Ah!, sim, sim.
 
Jornalista.- Desse é que fala.
 
Fidel Castro.- Não, não é de um país, é de um governo; eu tenho muito respeito pelo povo norte-americano, um sincero respeito.
 
Jornalista.- Me deixa continuar com a pergunta que lhe estava formulando?
 
Fidel Castro.-
Sim, estou disposto a responder-lhes o que vocês desejem a respeito do tema.
 
Dizia-lhes que se misturaram temas diferentes — até resulta importante, talvez, para vocês mesmos, seguir o fio da meada —; misturou-se o problema dos chamados dissidentes com o estranho fato, muito estranho, de que tendo decorrido 10 anos sem que acontecesse um seqüestro de aviões com passageiros a bordo tomados como reféns, acontecesse um assalto utilizando facas na garganta dos pilotos, como aquele que fizeram com os aviões que foram lançados contra as torres de Nova Iorque e contra o Pentágono. Se você constata uma belicosidade tamanha por parte da super-potência, um chefe diplomático enviado com a missão específica de provocar incidentes cujos propósitos são desbaratar um movimento dentro dos Estados Unidos, cada vez mais forte, contra o bloqueio e contra a proibição das viagens a Cuba, e criar condições para uma agressão armada, não tem outra alternativa que cortar pela raiz esses planos. Antes, os chefes do Escritório se misturavam nos problemas internos, mas este veio com instruções deliberadas de criar uma grande provocação.
 
Jornalista.- Estamos falando do Chefe da Repartição de Interesses norte-americanos, não é?
 
Fidel Castro.- O último, que chegou em setembro, mais ou menos, do passado ano 2002. É incrível. Critico nossa própria gente de não ter informado antes a que nível tinha chegado esse homem; ele percorria a ilha, em virtude da suposta necessidade de monitorar a situação daqueles que eles devolviam a Cuba ao serem capturados no mar na tentativa de viajar ilegalmente para os Estados Unidos, segundo o estabelecido no acordo migratório. Ficou combinado que com os que enviassem de volta não se iria tomar represália nenhuma. Durante os anos de vigência do acordo não houve uma só violação. Às vezes não resultou fácil, viu? Você podia ver uma universidade quase sublevada, porque não aceitavam que o empregado tal ou qual voltasse ali. Às vezes procuramos uma solução alternativa, porque não vamos entrar em guerra com uma universidade que está defendendo sua honra. Bom, tínhamos que procurar-lhe um outro trabalho eqüivalente. Mas se levou a cabo um estrito cumprimento, apesar de que muitos dos que viajam de forma ilegal são aqueles aos que não lhes outorgam vistos nos Estados Unidos; nunca lhes dariam os vistos pelos seus antecedentes penais. Trata-se, em geral, de pessoas com antecedentes penais comuns. Misturaram-se de má fé, pela propaganda imperialista, dois fatos totalmente diferentes.
 
No dia 14 de março se toma a decisão de prender um grupo dos mercenários a soldo da Repartição de Interesses dos Estados Unidos: dos chamados "dissidentes". Já esse homem — o Chefe da Repartição Interesses dos Estados Unidos em Havana —estivera percorrendo sistematicamente a ilha, conspirando. Falava de um novo programa de 6 000 milhas de percurso, recrutando, criando e organizando abertamente grupos contra-revolucionários, levando de contrabando malas cheias de rádios e equipamentos necessários para a audiência de sua emissora subversiva, criando as chamadas bibliotecas independentes, onde incluíam dois ou três autores bons, e o resto era veneno puro, da pior literatura, ou da pior propaganda.
 
É como se nós lhe disséssemos à nossa Embaixada: Olha, organiza bibliotecas na Argentina ou no Brasil, ou em qualquer um outro lugar. Já que o homem queria de fato agir como procônsul legalizado. Faz umas declarações públicas desafiadoras que eram inadmissíveis. Acho que as fez no dia 24 de fevereiro, num apartamento de Havana, onde se reuniu com um grupo de contra-revolucionários; eram as declarações de um chefe político.
 
Informado dos fatos, falei na Assembléia Nacional a 6 de março, e lhe respondo ao indivíduo que não imaginasse que iríamos tolerar aquilo, que se queriam levar-se a Repartição, ou se queriam dar cabo dos acordo migratórios, nada disso nos tirava o sono. Foi uma crítica dura.
 
Nela expliquei que a monitoração não estava no Acordo. Tratava-se simplesmente de um gesto temporário da parte de Cuba. Por enquanto, nada. Normas que existiam para eles e para nós, relativas ao movimento do pessoal diplomático: eles não pediam autorização para se movimentar, mas avisavam três dias antes. Dissemo-lhes em nota diplomática: "Essa norma não vai continuar por enquanto, é preciso pedir licença com três dias de antecedência, e só se a receberem, podem-se movimentar fora da capital.
 
O quê fez? Como já não podia sair de Havana, emprestou a sede como centro de reunião dos mercenários. Então sua instalação se tornou numa sede de reuniões, posto de comando e chefatura dos chamados "dissidentes", com forte fornecimento de materiais e serviços gastronômicos.
 
Vejam bem, dispomos de todas as provas existentes: o dinheiro que recebem, como o recebem; porque também entre esses "dissidentes", como é natural, havia vários, como é de supor, que eram revolucionários, que alcançaram um alto nível de confiança entre eles; para os conspiradores ianques a decepção foi terrível. Com todas as provas em nossas mãos, não havia desmentido possível. Desejo acrescentar que nossa ação foi limitada. São todos os que estão e não estão todos os que são.
 
Muitos amigos do Norte nos recomendavam: "Não expulsem o Chefe da Repartição de Interesses, isso é o que eles querem". Nós também não o íamos expulsar, porque nunca expulsamos nenhum diplomata dessa Repartição durante todos esses anos, como costumam a fazer eles nas Nações Unidas e em Washington.
 
Jornalista.- Presidente, isso não faz com que a carga fosse vista como desigual por parte do Estado cubano, se castiga os que participam — os próprios cubanos — do esforço insurrecional, e não se faz nada com quem instiga, como você diz, com a prova, que é a Repartição de Interesses norte-americana. Não parece um pouco desigual punir com pena de morte três cidadãos cubanos, e que não se deseje expulsar...?
 
Fidel Castro.- Vejo que não consegui me explicar bem, e ainda há uma confusão. Nenhum desses chamados de dissidentes tem sido castigado à pena de morte, nem a cadeia perpétua, nem a 30 anos; são sanções conforme à gravidade de sua conduta, que oscilam entre 28 e 5 anos. A traição à pátria ao serviço de uma potência estrangeira inclui sanções muito mais graves. Os diplomatas da Repartição de Interesses dos Estados Unidos em Cuba, prestavam serviços para seu governo, violavam normas diplomáticas elementares, mas não traiam seu país, nem estão sob nossa jurisdição. Não tem comparação possível.
 
A pena de morte imposta pelos tribunais, relaciona-se com atos de seqüestros e tomada de reféns, que colocaram em perigo de morte iminente a dezenas de pessoas inocentes, alheias ao conflito. Sua ação delitiva de caráter comum era incitada pelas autoridades dos Estados Unidos, para provocar um conflito. Seus móbeis eram outros, mas sua perigosidade para o país era questão de vida ou morte, mesmo que do ponto de vista moral a traição consciente e pagada pelo governo dos Estados Unidos seja mais grave.
 
Jornalista.- Os que apanharam, a embarcação, os que seqüestraram a embarcação.
 
Fidel Castro.- Sim, mas eles seqüestram o navio no dia 1º de abril. Desde 19 de março, casualmente, no mesmo dia em que estoura a guerra, realiza-se o primeiro seqüestro. Uma hora antes de que estourasse a guerra, por volta das 04h:30, hora do Iraque, 09h:30, hora de Cuba — porque há sete horas de diferença —, um avião cubano que viajava da Ilha da Juventude para a capital, com 39 ou 40 passageiros a bordo, a última viagem do dia; é seqüestrado por indivíduos que colocam facas afiadas no pescoço dos pilotos.
 
Jornalista.- Sim, sim, conheço a história.
 
Fidel Castro.- Desviam o avião para a Flórida, e ao chegar lá é onde se cria o problema. Era a primeira vez que acontecia após os acordos migratórios: lá arrestam os caras das facas, aos cúmplices lhes dão residência e aos quatro dias um juiz decide que os seqüestradores diretos tinham direito a liberdade condicional; uns indivíduos que fizeram o mesmo que os que originaram a catástrofe em Nova Iorque; liberdade condicional. Imaginem se era ou não um problema! Porque se tratava de gente com antecedentes comuns; já expliquei que a gente que sai ilegal é porque jamais lhes dariam o visto para entrar ilegalmente nos Estados Unidos. Eles cuidam e selecionam: visto de residência, não sei como será com Argentina, mas com certeza que a alguém com antecedentes penais comuns não o receberá.
 
Essas eram pessoas com antecedentes penais criminais comuns. Quando em Cuba chegaram as notícias sobre a liberdade sob fiança, um segundo avião, no dia 31 de março, procedente do mesmo lugar, com 46 passageiros, foi seqüestrado por alguém que, com uma suposta granada na mão, no final do nave diz: "Tem que desviar". O piloto aterrou rápido o avião no meio da pista e o seqüestrador com a granada. Houve negociações.
 
Tinham algumas autoridades nos Estados Unidos que compreendiam que isso era uma loucura e não concordavam bem com isso; aí se constatou francamente o critério oposto de uns que queriam o máximo de provocação e outros mais moderados. Isso se discutiu. Os do Departamento de Estado disseram com muita energia que iam castigar os seqüestradores, até nos pediram que publicássemos essa posição. Fizemos tudo isso, e eles mesmos não queriam — alguns — que aterrasse na Flórida, preferiam um outro Estado próximo. Então, o quê fizemos? Conseguiu-se que o seqüestrador permitisse descer um número de pessoas, acrescentou-se o combustível necessário para ir a outro estado. O que fizeram foi, realmente, aterrar em Cayo Hueso; e ali as autoridades correspondentes são as que decidem se há investigação ou não. Maltrataram os passageiros, os humilharam, confiscaram o avião e retiveram parte da tripulação. Para os cúmplices do seqüestro, impunidade.
 
Na Flórida há um estado semindependente; lá se faz aquilo que quiserem os mafiosos e os amiguetes de Bush, que têm um controle total da polícia, das autoridades, dos juizes, dos procuradores. Isto proporciona uma grande estímuloção aos seqüestradores de aviões e navios de passageiros.
 
Veja, tivemos que investigar dezenas de casos de tentativas de seqüestros. Investigamos mais de 35 tentativas em uns dias, organizados por delinqüentes comuns. Mas há uma coisa importante: a onda de assaltos e seqüestros de aviões era inadmissível por várias razões poderosas — se quiserem não as enumero agora, algumas as insinuei. Dos três seqüestros que aconteceram, um foi direto para os Estados Unidos; ao outro se lhe deu combustível em prol da segurança e promessas que fizeram as autoridades norte-americanas, que não cumpriram em absoluto: maltrataram de novo os passageiros igual que no primeiro seqüestro e ficaram lá com o avião; o último foi um barco de passageiros que presta serviços em águas interiores da baía de Havana, e soe levar até 100 pessoas. Nesse momento iam 40. Seqüestram-no também com armas de fogo e armas brancas. Em nosso país, para evitar incidentes, quando alguém está com um barco no mar e leva pessoas dentro, muitas vezes mulheres e crianças, o que se faz é um acompanhamento, não é interceptado.
 
Já uma vez se criou a única desordem que houve em Cuba, em mais de 40 anos, foi no dia 5 de agosto de 1994. Não sei se vocês conhecem a história de como aquilo se resolveu sem exército, sem polícia, sem um disparo, simplesmente; estavam atirando pedras, e era porque foram enganados. Desde a rádio subversiva lhes disseram que vinha um grupo de barcos à procura deles. Então, esse elemento se acumulou à beira do mar; ao não chegar as embarcações, começaram a lançar pedras e criaram uma confusão. Isso foi em 5 de agosto de 1994, nos momentos mais difíceis do período especial.
 
Aquilo originou o que se chamou de emigração ilegal massiva, porque dissemos: "Nós não lhes vamos cuidar as costas aos Estados Unidos", e então, simplesmente, greve; o que fizemos foi uma greve. Aquela gente que emigrou conhece bem à Revolução, tem uma confiança cega em sua palavra. Se se diz: Olhem, enviem uns barcos à procura de seus familiares, é mais cômodo do que correr o risco de viajar em outros meios. Não têm dúvida nenhuma em enviar os barcos. E porquê correm riscos de viajar sem visto? Porque há uma lei que se chama Lei de Ajuste Cubano, que se aplica a um só país do mundo, Cuba, que está pertinho, e é o direito a receber entrada e dar-lhe residência legal para todo aquele que chegue lá de forma ilegal. Não importa quais sejam seus antecedentes penais.
 
Imaginem que aos mexicanos lhes outorguem uma lei de ajuste. Não a pedimos, porque nós a chamamos de lei assassina. Nós o que dissemos é que em virtude do Tratado de Livre Comércio, o intercâmbio não seja só de mercadorias e dinheiro, mas de seres humanos como na Europa, em ambas direções.
 
Ali, tentando cruzar a fronteira com os Estados Unidos, morrem ao redor de 500 mexicanos cada ano; disso quase não se fala. Fala-se terrivelmente de Cuba porque tem que aplicar uma sentença de acordo com as leis previstas e o procedimento judiciário estrito. Ainda que eu compreendo, e lhe dou a razão à maioria esmagadora dos que se opõem à pena capital, porque a nós nos desagrada tremendamente. E se tínhamos de fato uma moratória de quase três anos, que nos vimos obrigados a quebrar, é porque eles, com o que fizeram — e foi deliberado, tinham-no pensado, isso o sabíamos — tentavam criar uma espécie de onda migratória que servisse de argumento, como perigo para a segurança dos Estados Unidos para agredir a Cuba.
 
Essa palavra usam-na para tudo. Se vocês produzem carne demais e ameaçam com baixar o preço da carne, podem ser conceituados como perigo para a segurança dos Estados Unidos — advirto-lhes —, ou se venderem muito trigo mais barato.
 
A idéia de que se originasse um êxodo massivo está, inclusive, expressada por escrito.
 
Você não pode permitir que se desate uma onda de seqüestros. Basta com que um indivíduo diga: "Tenho uma granada cá no bolso." Os do barco, com homens, mulheres e crianças, levaram-no até 20 milhas, com mar força quatro, até que se esgotou o combustível. Foi um milagre que não afundassem! Prestamo-lhes auxílio com nossos barcos. Vieram para terra, mas sem depor sua atitude, exigindo combustível, e então ali é onde se realiza toda a tarefa para conseguir libertar os reféns; não foi necessário usar a violência. Mas não porque eles colaborassem, senão porque os próprios passageiros se sublevaram graças ao conjunto de medidas psicológicas adotadas pelas autoridades cubanas em coordenação com os reféns; lançaram-se à água e todos foram resgatados.
 
Nós já conhecemos o potencial migratório. Se dizemos: "Os que desejem ir-se, estamos em greve, ou venham buscá-los", ninguém hesitaria em fazê-lo. 90% dos que emigram e se acolhem a essa lei de ajuste são cidadãos que vêm à procura deles desde a Flórida em lanchas rápidas enviadas por familiares; mas também entre eles se move o outro tipo de gente que provém do delito comum. Uma parte importante daqueles que vêm procurar provêm igualmente do setor que não recebe vistos. Afinal, mais de 50% dos que viajam ilegais em virtude de certas famílias, com certos recursos, que pagam até 8 000 dólares por pessoa, fazem-no numa lancha rápida de 12 passageiros, nas quais montam 15, 20, 25, 30, e não são poucos os casos de barcos que afundaram dando lugar a muitas mortes.
 
Esse é o problema. Resumo-o assim. Em 14 de março se toma a decisão de arrestar a um grupo de mercenários; começam as apreensões no 18; no dia 19 se produz o seqüestro do primeiro avião por delinqüentes comuns — uma coisa que não acontecia, como se explicou, havia 10 anos —, veja só quem foram estimulados a levar-se esse avião, e aos quais se lhes concede imunidade. Quando souberam da imunidade, corre a notícia entre delinqüentes comuns, eles acreditam que a máfia cubano-americana é dona de tudo e se multiplicam os projetos de assaltos a barcos e aviões. Os que seqüestraram o barco de passageiros no dia 1º de abril dizem: "Levamos quatro estrangeiros e tantas crianças", ameaçaram, se não lhes davam outra embarcação ou combustível, com ir atirando reféns para a água. Essa era a característica. Se acedemos a tais demandas, o problema se torna insolúvel.
 
Em uma situação dessas há um exemplo e um precedente: Nós, àqueles que roubavam os aviões norte-americanos os sancionávamos, devolvíamos logo o avião aos Estados Unidos, depois de atender os passageiros otimamente. Não foram poucos os aviões norte-americanos de grande porte seqüestrados nos Estados Unidos e desviados para Cuba. Eles inventaram esse procedimento contra Cuba, porém depois virou um bumerangue, porque tem muita gente desequilibrada nesse país. Até com uma garrafa de água diziam: "Olha, cá tenho um coquetel molotov", e os pilotos costumam a ter instruções de não correr o menor risco.
 
Lá, em ocasiões, a polícia disparou contra os pneus e nós tivemos que meter escuma na pista para que um avião carregado de passageiros aterre sobre as rodas de ferro sem pneus.
 
A finais de 1980 estava Carter na presidência. O problema vinha de antes, porque o inventaram contra Cuba governos anteriores. Como o resolvemos? Devolvemos dois seqüestradores. Antes eram sancionados até cinco anos de cárcere. Tivemos que elevar as sanções, mas, simplesmente, não paravam os seqüestros.
 
Aí adotamos a outra fórmula: devolvemo-lhes dois seqüestradores e resolvemos definitivamente o problema. Não haveria necessidade de fuzilar ninguém se os seqüestradores fossem devolvidos, como nós os devolvemos e lhes resolvemos o problema de tal maneira que em mais de 20 anos, apesar dos desequilibrados, não voltou a acontecer. Agora lhes dizemos: "Devolvam-no-lo". Era óbvio que Cuba tinha de cortar de raiz o problema do seqüestro de seus aviões e barcos de passageiros.
 
O Conselho de Estado não exerceu clemência e esses delitos estão sancionados há muito tempo com a pena capital. Inclusive, algumas dessas leis não se aplicavam. Porquê? Porque não havia interesse, não tinha uma situação de perigo de guerra como a que temos agora; perigo de uma onda de seqüestros de aviões e barcos. Só lhes faltava, um dia qualquer, assaltar um ônibus de turismo, três caras com uma faca e dizer: "Mato três turistas se não me levam para o aeroporto e me dão um avião para ir-me embora". Assim são as coisas ajustadas à estrita realidade. O Conselho de Estado tem a faculdade de exercer clemência, mas não tem a obrigação de o fazer.
 
Se você sabe que existe um perigo sério para a vida de muita gente, um perigo sério de um conflito, que pode realizar-se se eles continuam outorgando-lhes residência aos seqüestradores, se não os devolvem, com o que conseguiriam resolver todos os problemas. No caso do barco, quando eram advertidos de um grupo que viajava ilegalmente, enviavam os guarda-costas até bem próximo de Cuba para os recolher e devolvê-los antes de chegar às costas dos Estados Unidos. Sabem o que fizeram? Enviaram como sempre uns guarda-costeira; ao meio-dia avisaram que não, que isso era um assunto nosso em virtude de um acordo internacional, que o país da bandeira do navio era quem devia resolver o problema em águas internacionais. Eles podiam resolvê-lo como de costume e não o fizeram. Não queriam mexer nisso, sabe-se lá porquê, e aí dizem: "Resolvam-no vocês."
 
Tivemos que fazer uma declaração ulterior e afirmar categoricamente: "Não receberá nem um pingo de combustível de nenhum tipo, o avião ou barco seqüestrado que aterre ou chegue a porto de Cuba." O pessoal sabe, e eles também, que quando se afirma isto, é bem assim.
 
Dissemos adicionalmente: "Os que cometam tais ações serão enviados aos tribunais, julgados de forma sumaríssima, e o Conselho de Estado não exercerá clemência." Os passageiros, com ações criminosas desse tipo, correm riscos inevitavelmente. Eu perguntava: "E se nessas aventuras irresponsáveis explode um avião no ar, com todos os passageiros, quem é o responsável desses mortos, nós ou aqueles que os estão provocando desde os Estados Unidos? Serão culpados não só os que incitam a cometê-los ou cometem o fato, senão aqueles que nos condenaram sem piedade porque tivemos que aplicar medidas em defesa de Cuba e de seus filhos. E quanto lhe custaria uma guerra a Cuba com os Estados Unidos? Seriam milhões, porque Cuba é um país que já tem uma cultura de luta.
 
Jornalista.- De defesa.
 
Fidel Castro.- Tem a decisão de o fazer, e lá a guerra não acaba em três dias, nem em 100 dias, nem em 100 anos, porque estudamos todas as guerras que eles fizeram nos últimos 40 anos, suas técnicas, suas táticas, e sabemos como nos defender. De nada valeria o que você dissesse, se você não pudesse contar com milhões de pessoas, milhões de armas, e com o conhecimento necessário de como se defender.
 
É uma guerra que não queremos; uma vitória sangrenta que não desejamos no absoluto; mas, é claro, jamais entregaremos o país.
 
Falo-lhes assim, com toda a franqueza. Há uma confusão, a pesar de tê-lo dito e daquilo que temos explicado. Você sabe que depois vêm os telex e fazem uma caricatura do que se diz. Nenhum dos mercenários chamados de "dissidentes" foi fuzilado. Graças a Felipe reparei nesse detalhe na pergunta. Agradeço a ele por ter podido explicá-lo melhor. Eu simplesmente ia explicar as causas do arresto e das sanções.
 
Jornalista.- Presidente, cá se leu...
 
Felipe Pérez.- Tem que ser essa a última, porque já são 12h:50.
 
Fidel Castro.- Bom, vamos ver, vou falar menos, mais rápido.
 
Jornalista.- Cá se leu a respeito de sua presença em Buenos Aires como uma retribuição de gentileza pela posição argentina de se abster na votação sobre Cuba nas Nações Unidas, é uma leitura correta?
 
Fidel Castro.- Entre outras causas, sim.
 
Jornalista.- E as outras?
 
Fidel Castro.- Das outras estivemos falando. Vejo um movimento interessante, e temos alguns amigos entre os que vinham aqui, que são pessoas de prestígio; tinha essa oportunidade de cumprimentá-los. Em segundo lugar, porque nos alegramos muito, por Argentina, da evolução dos acontecimentos. Alegramo-nos.
 
Víamos a importância que tinha, não só para o povo argentino — enviando muita gente, muitas mensagens —, senão, inclusive, para o processo em seu conjunto, na procura de soluções em momentos difíceis, porque se sabe, a gente pode fazer o levantamento das dificuldades. Solidariedade com Argentina, com o povo e com a atual administração, o governo argentino. Sim, tudo isso.
 
E pensei nisso muito bem. Pensava; qual era a única preocupação? Estávamos próximos do 20 de maio e uma série de medidas de respostas possíveis às ameaças, e eu não sabia se estaríamos ali mobilizando 2 milhões de pessoas em um protesto, ou estaria aqui, o que me retinha quase até ao final. Tivemos que esperar o 20 de maio, em que o governo norte-americano e a máfia terrorista de Miami fizeram coisas insólitas: engano, introduziram um avião da Força Aérea, o colocaram a 6 000 metros para interferir nossa televisão com nossos avançados programas educacionais.
 
Ainda bem que eles erram constantemente, são errantes, são campeões olímpicos no erro, o que não resulta difícil quando se é campeão olímpico da força e do poder, de um poder superior a todo o resto do mundo junto, e a capacidade de destruir este mundo; porque eles já disseram, inclusive, não só isso, senão que qualquer obscuro canto do mundo podia ser atacado. Não sei se vocês terão algum obscuro cantinho por aqui. Se o tiverem, ponham-lhe luz elétrica pelo menos, (Risos), para que não sejam vítimas.
 
Jornalista.- Desculpe que o interrompa.
 
Você falou dessas circunstâncias, e como foi sua relação com a década passada, com o governo passado, com Menem?
 
Fidel Castro.- Explico-te logo, me tomo mais um minuto, mas deixa concluir com o que te estava dizendo.
 
E outra coisa muito importante, se minha vinda lhe ocasionava algum prejuízo ao governo, porque sou um cara que, já sabe, infelizmente, quando chego, às vezes, recebem-me com um pouco de barulho. Bom, assim me receberam no México quando a toma de posse. Aqui não houve perigo de que caísse todo um edifício de cristais, porque os jornalistas, fotógrafos e os que manejam as câmaras são uma tropa, a eles não há quem os agüente. Hoje fui colocar uma coroa de flores a San Martín e a Martí e quando me vi no espelho, vi uma pequena risca aqui; sai com uma pequena lesão. E até o Presidente da República, que foi escoltado pelos cavalos, algum operador de câmara lhe deu um baque, mas não acusem ninguém (Risos). No dia de sua toma de posse lhe fizeram uma ferida.
 
Pude me aperceber de que não seria visto com maus olhos o fato de aceitar o convite, portanto, até o último momento não tive a certeza de que iria vir. Cheguei à convicção de que não faria dano nenhum; porque você não deve ir porque o convidem; às vezes convidam, mas assinalam um nome: que venha fulano. E neste caso ninguém assinalou nenhum nome ou alguma coisa parecida; e temos muitos amigos. Antes pelo contrário, finalmente houve satisfação quando se falou que eu tinha possibilidades de vir.
 
Também as viagens para mim não são muito fáceis. Viajo num iL-62 velho. Falaram de Allende. A primeira vez que o utilizei foi em 1971, mais ou menos, quando visitei Chile. Esse é que usei toda minha vida. Já dei duas vezes a volta ao mundo nele; faz barulho e além disso, ao chegar ontem tinha umas nuvenzinhas baixíssimas, densas, e vejo que voa por debaixo das nuvens, e não sabia se ia aterrar na pista ou em um parque desse lugar. A questão é que sempre que sai, chega.
 
Fiquei muito contente por ter vindo, porque vi uma coisa que não se pode transmitir por telex: estado de ânimo. Vi à gente, em geral, em todo o lado, no Parlamento, num estado anímico como de esperança, de satisfação, uma esperança de encontrar a solução. Isso vi, e um bom clima, um clima excelente. É o que posso dizer.
 
Jornalista.- Mas o Menem foi uma relação de 10 anos, e onde você mesmo comentou coisas muito chamativas na época...
 
Fidel Castro.- Porém, antes do mais, quero esclarecer que na entrevista que me fez Bonasso, quando eu disse refrigerante, queria dizer gasosa — e não quero fazer propaganda contra sua colheita, para quê? — referindo-me ao champanha que me obsequiava Menem. Não falei muito mal; disse do champanhe que, como refrigerante — que vocês diriam como gasosa —, era excelente. Bom, dávamo-nos, vocês o conhecem bem. Convidava-me a Rioja cada vez que eu vinha. Muito amigo! Falávamos do melhor, até o momento em que ia para a conferência de imprensa e quando chegava ali estava: ra, ra, ra, contra mim (Risos). Mas você não deve tomar a sério essas coisas, e continuávamos falando amistosamente. A antítese do pensamento dele é o meu; são antitéticos; mas a cortesia obriga. O quê vou fazer? Não posso botar cara de mau.
 
Olha, mesmo ontem houve um almoço de chefes de Estado, e estavam todos — alguns falaram sabe-se lá quantas coisas de mim —, porém muito educadinhos, todos ali sentados e eu caladinho, porque estavam discutindo problemas deles.
 
Olha, pude ver um espírito. Que espírito vi? Quase quase um espírito de unidade, com relação aos problemas econômicos. Nunca vira nada parecido em nenhum lugar, apesar de que os critérios não são iguais. No Cuzco estiveram discutindo outros temas; mas ali constatei, e julgo que não estou cometendo uma indiscrição — não vou dizer nada em concreto —, mas vi, sim, um espírito, um raro e esquisito espírito de coincidência em todos sem excepção, incluídas as esposas, em coisas econômicas das mais importantes (Risos).
 
Jornalista.- Para mim, há uma coincidência, entre outras, que é a eleição e a expressão de que a eleição é o capitalismo. Isso não é uma derrota das idéias socialistas depois de 45 anos de revolução?
 
Fidel Castro.- De que a última alternativa é capitalista?
 
Jornalista.- É o que dizem os governos desta região, incluído Lula, por exemplo.
 
Fidel Castro.- Sim. Permite-me falar, e falo não por temor a alguma coisa. Acho que cada país em concreto precisa de sua solução em concreto. Digo que Cuba não teria sob o capitalismo o que tem hoje, nomeadamente o que vai tendo a um ritmo impressionante nos últimos anos, porque também a aprendizagem e a experiência têm um valor imenso.
 
Olha, o derrubamento do campo socialista enriqueceu nossa experiência. Foi uma desgraça, uma tragédia, porque nos deu a todos de presente a potência hegemônica. Quando tinha duas super-potências, Nyerere afirmava que quando dois elefantes brigam, a erva é a prejudicada... Sim, mas, creia-me, mais vale dois elefantes mais ou menos com certos limites, do que um só elefante dono da pradaria e dono de tudo; dono de correr e pisotear as 24 horas do dia; isso é o que tem acontecido, e seu poder é imenso. Nós tivemos que encarar esse poder; temos um excelente treino nesse sentido.
 
Quando o bloqueio se intensificou, e surgiu o período especial em tempo de paz, ninguém deva um centavo pela Revolução Cubana. E, além disso, quando as leis se endureceram, as medidas se tornaram mais rígidas com a Lei Torricelli e a Lei Helms –Burton, quase não encontram o quê inventar; tivemos que suportar todas as provas. Somos um povo de veteranos curtidos.
 
Jornalista.- Presidente, eu tenho a última pergunta, e o remeto — com certeza você se lembra — à Primeira Cúpula Ibero-americana em Guadalajara. Eu estive ali cobrindo aquela Cúpula, e do seu discurso central me lembro, até hoje, com nitidez, quase posso ouvi-la, quando você falava uma frase para os outros presidentes...
 
Fidel Castro.- Você se lembra que elogie Endara, de Panamá, apesar de ter saído de um quartel norte-americano? Ante o meu assombro utilizou uma linguagem francamente nacionalista.
 
Jornalista.- Mas houve uma frase que você lhes disse: "Pudemos haver sido tudo, e não somos nada". Essa era uma...
 
Fidel Castro.- Referia-me ao hemisfério.
 
Jornalista.- Sim, claro. Por isso digo. Esse diagnóstico, aliás, sentença, me pareceu — por isso me lembro dela até hoje — final, terminal. Mudou essa visão?
 
Fidel Castro.- Não.
 
Jornalista.- Não?
 
Fidel Castro.- Hoje, ao que parece, estamos começando a ser alguma coisa.
 
Jornalista.- Ah!, isso, isso.
 
Fidel Castro.- Quanto passou desde a independência, há quase 200 anos?, e o quê temos sido? Os britânicos donos aqui no Sul, e os do Norte invadindo México, tiraram-lhe mais da metade do território das regiões mais ricas em petróleo e em tudo. A Panamá lhe arrancaram um pedaço de terra. Apoderaram-se de Porto Rico. Têm-nos governado de um jeito ou doutro, direta ou indiretamente, ou derrocando governos. Quer dizer, se este hemisfério se tivesse unido — e houve mais de um que proclamou a unidade: Bolívar foi um dos que mais falou nisso —, hoje seríamos alguma coisa no mundo, não inferiores a ninguém. Em todo o tratamento que recebemos também há bastante de racismo. Lembro-me que sendo ainda estudante visitei os Estados Unidos, já estava bastante pintado de vermelho. Pude ver que a gente era discriminada por ser latina.
 
Jornalista.- Sim?
 
Fidel Castro.- Sim, sim, por ser latina. E as minorias? Sabe-se bem o que lá acontece, não é preciso estar repetindo.
 
Sinto uma sincera admiração pelos latino-americanos, por seu talento, sua valentia. Acredite que, inclusive em El Salvador, país muito pequeno, vimos — porque estavam bastante próximos — como se enfrentaram ali a forças bem superiores que contavam com um rio de fornecimentos militares, de helicópteros e de tudo.
 
Não deve haver guerras. Devemos lutar, inclusive, à procura de soluções de paz em qualquer parte; também na Colômbia. Não deve haver guerra, porque pela guerra, neste instante da história da América, não se resolve nenhum problema.
 
Acho que o grande erro dos Estados Unidos, e aí está no discurso que proferi no mesmo dia 11 de setembro alertando sobre esse perigo, foi utilizar a via da guerra para solucionar o problema do terrorismo.
 
Pensava que havia que unir a toda a opinião mundial, havia que unir a todos os partidos, a todas as correntes de opinião, a todas as igrejas, nessa luta contra tais métodos. Acho que não há nenhuma igreja partidária do terrorismo, como eu o vejo, que são aquelas ações que custam vidas de pessoas que são alheias ao conflito. Nós nunca, em nossa luta de libertação, praticamos esses procedimentos.
 
Infelizmente, como há tantos caracteres diferentes, países diferentes, formas de luta e problemas diferentes, a tarefa de encontrar formas justas de paz não é nada fácil. Inclusive, hoje os problemas da Colômbia não são os de há 40 anos. Lá existia a guerrilha antes que em Cuba.
 
Jornalista.- Que em Cuba, sim, sim.
 
Fidel Castro.- Marulanda já andava insurrecionado antes de que em Cuba nascesse a guerrilha. E na época do nosso triunfo estava bastante tranqüilo. Verdade é que o provocaram numa dada altura. A República de Marquetalia, famosa, é testemunho disso. Quando foi se reunir com o presidente Pastrana, na zona de San Vicente de Caguán, a cadeira de Marulanda ficou vazia, porque tinha uma desconfiança tremenda por coisas que lhe tinham acontecido com anterioridade. No projeto de discurso lido por outro, está a lista completa do que tinham naquela comunidade. Vi uma cópia dos discursos, isso se soube, cada bode, cada vaca, cada galinha, cada mulo da República de Marquetalia, e que estando na paz foi invadida. Outras vezes, em negociações, puseram-lhe uns aparelhos de localização e o bombardearam; por isso é terrivelmente desconfiado.
 
Agora, o problema da Colômbia só pode ser resolvido pela paz e na paz; acho que todos devem pôr da sua parte. Paz verdadeira, porque algumas pazes ali findaram no cemitério. Os próprios comunistas, que foram a vários processos eleitorais, perderam mais de 3 000 homens, era um matadouro de quadros. A outras organizações lhes aconteceu a mesma coisa. Todos esses antecedentes complicaram muito ali as coisas, e agora se une um ingrediente externo.
 
Julgo que, da mesma forma em que os latino-americanos pensam que há que se unir para procurar soluções à gravíssima crise econômica, há que se unir para procurar uma solução ao problema da paz e da unidade das nações latino-americanas sem ingerência alguma dos Estados Unidos. A este hemisfério não lhe convém nenhuma intervenção, pelo destroço que causaria a nossos povos e suas riquezas. Afinal, não conduziria a nada nem liqüidaria a violência; antes pelo contrário.
 
Nisto, como na luta contra o terrorismo, as drogas, a destruição do meio ambiente, o analfabetismo, a fome e as graves doenças que açoitam e dizimam o mundo, nossas posições são bem claras e conhecidas.
 
E no relativo às guerras de conquista, um país pode ser conquistado e jamais governado depois da conquista, porque você dentro de um tanque não pode governar um país, nem sequer ocupá-lo. Há mistérios que ainda não se conhecem, como o quê se passou?, o quê aconteceu com a direção iraquiana? Se morreu ou não. O mistério. A mim me parece esquisito, porque conheço os vizinhos do Norte, e quando eles não dizem nem uma palavra de nada, viram suspeitosos. Vi no Iraque imagens de multidões imponentes, quando são massas como o milhão ou mais de chiitas que não queriam Sadam, mas que não estavam em luta com a pátria iraquiana; e os muçulmanos e sunnitas, de igual cultura e religião, persuado-me mais de quão insensata foi a linha seguida pelo governo dos Estados Unidos depois dos dramáticos acontecimentos de 11 de setembro.
 
O caminho para encarar o terrorismo era político e não militar. Era preciso criar uma cultura contra o terrorismo não a tentativa de usá-lo como pretexto para a aplicação de doutrinas pré concebidas para atacar, invadir países, esmagar as lutas justas pela libertação nacional e dominar o mundo sobre a base do terror e a força.
 
Respondendo a sua pergunta, falo-lhe com muito realismo e em virtude da experiência que tive o privilégio de adquirir durante muitos anos de luta. Se estivéssemos naquela época, teria feito o que fiz; não mudei absolutamente meus sonhos e esperanças. Agora vivemos outra época, e as táticas de luta estão sendo desenvolvidas pelos próprios povos e suas próprias lideranças, ajustadas às condições de cada país. Os homens de mais prestígio têm o dever de ser exemplo e lutar pela honradez, a firmeza e a integridade dos que combatem por preservar o mundo e torná-lo melhor. Há tremendas mudanças de tipo tecnológico e nas comunicações, que não existiram nunca. Há, além disso, problemas no mundo e riscos mais sérios que os que nunca houve.
 
Aquando da vitória da Revolução Cubana, ninguém mencionava a palavra meio ambiente. Esse conceito nasce ao longo destes anos. Ninguém falava da camada de ozônio, de aquecimento, de mudanças climáticas que se tornam problemas vitais para toda a humanidade e unem a toda a humanidade. Ninguém falava de invasão cultural, que se produz através do monopólio dessa mídia que se estende por todo o planeta. Há muitos problemas novos que preocupam à humanidade, aos intelectuais e não intelectuais, àqueles que trabalham com suas mãos e aos que trabalham com o pensamento. As diferenças se reduzem. É preciso universalizar os conhecimentos.
 
Nosso país vai se tornando um país de intelectuais, que já são centenas de milhares. Estendemos a todos os municípios do país a educação universitária, com fórmulas inclusive de como combater o desemprego. Rapazes que se afastaram dos estudos, entre 17 e 30 anos de idade, temos mais de 100 000, aos quais lhes damos uma remuneração por estudar. É preciso ver, você lhe está tirando matéria-prima as cadeias, porque estivemos estudando muitos aspectos sociais, ainda nunca bem estudados.
 
Até no relativo à pena de morte, já dissemos que aspiramos a que seja erradicada; não obstante, nas condições em que agimos, assumimos a responsabilidade, com uma consciência absolutamente tranqüila, porque a gente tem uma idéia do que acontece no mundo, do que pensam os outros e do que pode custar-lhe a Cuba uma guerra, muito mais do que a qualquer outro país; porque o custo é maior na medida em que seja capaz de se defender, quando existe toda uma consciência necessária para se defender até a morte.
 
Podem acreditar que se não continuo falando com vocês, não é porque não tenha vontade de explicar, mas porque vocês sabem que tenho um monte de pessoas esperando ali, e tenho que ter com o Presidente às 15h:00.
 
Jornalista.- Até quando vai estar aqui?
 
Fidel Castro.- Até hoje, depois do meio-dia. Sim, será depois do meio-dia, pois ainda tenho algumas obrigações. Foi uma grande satisfação conversar com vocês.
 
Jornalista.- Para mim, senhor.
 
Fidel Castro.- Constatei muita seriedade nas perguntas e na conversa.
 
Jornalista.- Muito obrigado.
 
Fidel Castro.- Eu, cá comigo, encantado, me alegro.
 
Jornalista.- Falam-me que desejam fazer-lhe uma foto ao senhor lá...
 
Fidel Castro.- Correto.

Lugar: 

Buenos Aires, Argentina

Fecha: 

26/05/2003